Hoje é sete de setembro. Dia em que o Brasil comemora sua independência de Portugal. Desta vez a festa é para festejar a volta da democracia. Os convidados são todos, não dos poucos que tramam pela ditadura. Mas os descendentes do bravo povo dos Sete Povos das Missões têm pouco a comemorar, não tiveram sua independência e ainda dependem das decisões de outros. O artigo de hoje conta e canta sobre eles que viveram e morreram nos longínquos campos missioneiros, num espaço ocupado pela etnia guarani entre o Paraguai, o norte da Argentina e o noroeste do Rio Grande do Sul.

Documentário formatado em uma série de quatro curtas-metragens musicais e on the road, a proposta cinematográfica de “Cantata Sete Povos” foi um desafio em minha carreira. O filme propõe uma narrativa contemporânea, que busca conduzir o espectador em uma viagem poética ao já acontecido, à procura de respostas para questões que ainda permanecem vivas na atualidade.

O mediador do processo é o compositor gaúcho Raul Ellwanger, que garimpou sua inspiração musical nas raízes barrocas da catequese jesuítica, das quais tomou o gênero Cantata. Em sua origem, as canções originais ou vieram da Europa ou foram compostas na América do Sul por religiosos jesuítas, durante os séculos 16 e 17. Eram, então, utilizadas como instrumento de aculturamento, conversão e pacificação dos povos originários, como os guaranis, que habitavam aquela região do Cone Sul há mais de mil anos.

Focado no período do esplendor das Missões, o consagrado Ellwanger compôs uma suíte popular de 12 canções originais em diferentes estilos – que narram a saga guarani em busca da utópica Terra Sem Males e sua relação com os religiosos europeus. A série está ambientada na região e entre as ruínas de cidades e prédios onde essa história se desenvolveu, entre os quais Ellwanger transita e canta. Na antiga missão de São Miguel, por exemplo, o documentário apresenta ao espectador a visão do terreno onde, antigamente, circulavam os guaranis e os frades. Por lá também passaram os bandeirantes e os encomenderos, os principais predadores dos guaranis aculturados e protegidos pelas reduções jesuíticas.

A beleza e grandiosidade do que restou de São Miguel e do plano urbano da velha cidade são elementos essenciais para o entendimento da dimensão do projeto estratégico da Companhia de Jesus.

A iconografia que documenta o processo – esculturas, mapas e gravuras – exerce função importante na proposta memorial do filme. O contraste do passado com o presente surge no documentário nas gravações realizadas em aldeias, nas quais o resiliente povo guarani aguarda pela Terra Sem Males – um desejo profundo, místico, que o define. As gravações nas aldeias – espremidas entre cercas de arame e ameaçadas pelo agrotóxico das fazendas que ocupam o antigo espaço livre das terras sem donos – exibem o drama dos povos originários, privados da maioria dos recursos naturais de sua manutenção e sobrevivência.

Ao olhar para o passado, o filme trata, também, de avaliar as ações políticas e administrativas dos catequizadores na ligação do reino divino entre a ocupação pelas antigas coroas Ibéricas. Uma sofisticada e difícil montagem de um projeto que encontrou seu fim pela força das armas no tabuleiro dos interesses geopolíticos do século 18.

Escrever e dirigir documentários é sempre um enfrentamento pessoal do autor e de sua equipe com as surpresas que se escondem no caminho da produção, algo que nenhum roteiro é capaz de prever. Assim, observo o cinema documentário em uma via de mão dupla. Em primeiro lugar, entendo que o documentário é uma representação da realidade distinta do filme ficcional. Um documentário, tal como “Cantata Sete Povos”, busca reconstruir situações da realidade presente ou passada, para apresentá-las como elemento para reflexão e análise. Deste modo, ele poderá ser entendido como uma fonte para a compreensão das contradições sociais.

Por outro lado, o filme será sempre uma produção subjetiva do real. É justamente aqui onde emerge a visão de mundo do roteirista e do diretor. O documentário passa a ser, portanto, uma fonte histórica e sociológica. Ele contribui para o entendimento e a transformação da sociedade na qual vivemos. Mas é um exercício tão aberto e arriscado quanto necessário, é como a trilha de um concerto de jazz, como disse, em certa ocasião, o chileno Patricio Guzmán, o melhor documentarista da América Latina.

“Cantata Sete Povos” é uma realização do Instituto Latinoamerica, com 21 anos de atuação cultural e educativa, com produção da Kino Kaos Filmes e Poética Produções.

Direção e roteiro final: Omar de Barros Filho (Matico)
Assistente de direção: Saturnino Rocha
Argumento: Paulo de Tarso Riccordi
Produção: Rosane Furtado
Direção musical: Raul Ellwanger

Clique para assistir o episódio 1 e o episódio 2 da Cantata dos Sete Povos.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
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