Os pincéis de Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, uma portuguesa e um húngaro, conjugaram o seu amor e a arte de cada um, num triângulo amoroso com a pintura que os uniu na aventura da criação.

Vieirarpad é o mais recente filme documental realizado por João Mário Grilo, a convite da Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva, na sequência da exposição Escrita Íntima e livro homónimo (2014) que reuniu parte da correspondência particular entre Vieira e Arpad no período de 1932 a 1961. O cineasta, autor e professor português, estreou-se na realização aos 20 anos com Maria (1978) e da sua longa filmografia destacam-se, entre outros, O Processo do Rei (1989), Os olhos da Ásia (1996), Tapete Voador (2008) e Amadeo, e depois (2014).

O olhar de João Mário Grilo, muito próximo da pintura e fascinado pela interação cultural, debruça-se sobre a arte dos dois pintores e a invulgar história de amor que os manteve juntos durante cinco décadas e meia. Tendo como fio condutor algumas das cartas que escreveram um ao outro nos poucos períodos em que só a geografia os afastou, nelas é revelada a natureza fusional da relação entre Vieira e Arpad, numa osmose passional que atravessa os seus exílios e chega até, por vezes, a diluir o gênero de cada um. A minúcia com que o casal teceu o seu legado conjunto para uma posteridade reconciliada com Portugal, deu origem e corpo a este filme que, “no sentido de encenação da memória, de construção do futuro”, nas palavras do realizador, “já estava feito”.

A produção executiva esteve a cargo do português Fernando Centeio (ZulFilmes), ao qual se associou à produtora brasileira Gullane, e a estreia comercial aconteceu em junho de 2022: no dia 2 em Portugal, no dia 9 no Brasil e no dia 10 na França.

Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva – FASVS

As dezenas de cartas de amor trocadas entre Maria Helena e Arpad são o tesouro particular de um fundo epistolográfico, composto por cerca de 4000 itens, que engloba a correspondência do casal com artistas e intelectuais que fizeram parte do seu universo relacional ao longo de décadas. Para além da coleção de pintura, gravura e desenhos de cada um, o acervo da Fundação inclui ainda um importante núcleo de fotografia proveniente do arquivo pessoal de ambos.

Em 2013, a Fundação – que é depositária, conserva, divulga e promove a investigação em torno da obra de Vieira e Arpad existente em Portugal – publica um livro, intitulado “Escrita Íntima”: construído a partir de uma seleção atenciosa de 53 dessas cartas apaixonadamente manuscritas, em francês salpicado de português e húngaro, apresenta-as transcritas e traduzidas, dando o mote para a escolha das obras e fotografias que viriam a ser expostas na mostra homônima, no ano seguinte. O testemunho nelas contido acerca da vivência de cada um dos artistas é, assim, considerado relevante para o conhecimento dos seus percursos na arte e na vida, o que compensa a “intrusão na sua intimidade”, nas palavras de Marina Bairrão Ruivo, mestre em História da Arte Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, curadora da Fundação desde 1993 e sua diretora desde 2008.

O filme é fruto do livro que, a jusante, conduziu à exposição – a complementaridade de um trânsito incessante entre as partes e o todo: Vieira da Silva, Arpad Szenes, Vieirarpad.

Escrita Íntima

Quantas cartas são precisas para testemunhar um grande amor? A pergunta, retórica, fica sem resposta, claro, porque não se trata de quantidade mas de qualidade e, aliás, o discurso amoroso, íntimo por definição, é único e irrepetível, como cada um(a) de nós.

Mas, quando se trata da história de amor entre Maria Helena e Arpad, uma verdade é incontornável: há um momento antes e um depois da divulgação de algumas das cartas que escreveram um ao outro entre 1932 e 1961. Esse espólio epistolar, e outra documentação em caixas, chegou à Fundação após o falecimento de Vieira, em 1992, ainda em formato de maços de cartas, tal como a pintora as conservou, e só começou a ser transcrito em 2002.

Desse trabalho minucioso, acompanhado de perto por Sandra Santos, responsável pela Gestão da Coleção e Arquivo da Fundação, logo sobressaiu “o sentido de humor e o carinho” patente nessas cartas trocadas entre marido e mulher. Foram selecionadas as mais “expressivas”, num arco de três décadas, durante as quais os períodos de afastamento geográfico foram poucos, mas vividos intensamente pelo casal. O livro “Escrita Íntima” contém textos de Marina Bairrão Ruivo e Sandra Santos, da Fundação, e de dois autores convidados: José Manuel dos Santos, que conviveu com Maria Helena e Arpad, e Valéria Lamego, que investigou sobre o exílio do casal no Brasil. A intimidade assim revelada e partilhada, o que é raro acontecer, aproximou-os do seu público e veio a ser o catalisador do filme Vieirarpad

Amoreiras

Epicentro criativo do casal luso-húngaro quando vinha a Lisboa, o bairro das Amoreiras conserva o brilho de muito do seu espólio: defronte do Jardim, a poucos passos um do outro, agrega a Casa-Atelier Vieira da Silva e a Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva – a primeira, que realiza o desejo de Maria Helena de abrir ao público e à possibilidade de residências artísticas o apartamento recatado que foi a sua toca no nº3 do Alto de São Francisco, oportunamente adquirido pela sua mãe; a segunda, situada na antiga Fábrica da Seda, criada no século XVIII pelo Marquês de Pombal, que conjuga em todos os tempos o legado artístico dos dois pintores. Uma escolha inevitável e simbólica: ambos os espaços são sinônimo de laboriosa minúcia, a mesma com que Vieira e Arpad urdiram a trama íntima e ímpar na qual os seus talentos se cruzam.

A primeira letra do alfabeto é generosa em palavras, no que toca ao casal Vieira-Arpad: Arte, Amor, Arpad, Atelier, Azul, Azulejos, Ação, e todas confluem no Jardim das Amoreiras. Aqui surgem inevitáveis associações simbólicas, relevantes para evocar a história e o percurso do par, feito de trânsitos e transformações – a árvore da amoreira e o conceito de ninho, já que as suas folhas são alimento vegetal dos bichos-da-seda, esses artistas criadores, e até o seu próprio nome, que contém o sentimento que os uniu, “Bichamor”; o bairro homônimo foi o epicentro criativo do casal, no nº3 da Calçada de São Francisco, casa e atelier quando das suas estadas intermitentes em Lisboa, na década de 1930, até partirem para o Brasil; o azul, do consensualmente ímpar céu da capital, da primeira cor do Testamento cromático de Vieira, e do azulejo, seu derivado, recomposto como um puzzle na estação de metrô da Cidade Universitária, azul-Vieira em fundo branco. E, por último, a palavra com que se iniciam as filmagens, no mesmo Jardim, imprescindíveis para Vieirarpad.

Pincéis Comunicantes

Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) e Arpad Szenes (1897-1985), uma portuguesa e um húngaro, conjugaram o seu amor e a arte de cada um, num triângulo amoroso com a pintura que os uniu na aventura da criação. O amor que construíram foi uma proeza alicerçada em confiança, desejo, respeito e liberdade. Num ateliê dividido em dois, com uma linha de demarcação virtual, simbólica fronteira entre os dois territórios e talentos, com identidades artísticas distintas tão coexistentes quanto in(ter)dependentes. Espaço de fruição dialética e evolução paralela, constante, tendo ao centro uma antecâmara, na qual uma aparelhagem difundia a música, de escuta partilhada, e, em tempos um lençol e depois uma porta sem paredes, que usavam delicadamente nas longas horas de trabalho criativo para se visitar, num enlace de pincéis comunicantes.

Um casal apátrida que encontrou no amor a sua pátria: viveram juntos e um para o outro ao longo de 55 anos, com raros períodos de separação, ditada apenas pelas suas circunstâncias familiares e pelo contexto político da Segunda Guerra Mundial. Para suportar as saudades nessas ausências forçadas, em especial entre as décadas de 1930 e 1960, escreveram um ao outro, alimentando em tinta sobre papel, o lume do seu discurso fogoso, íntimo e terno, naquela que foi a sua língua franca, o francês, numa linguagem bordada com termos carinhosos nos respectivos idiomas maternos, cuja frescura juvenil é encantadora.

Exílio Carioca

Quando a França e o Reino Unido declararam guerra à Alemanha nazi, já aliada à Itália fascista, em 3 de setembro de 1939, Vieira e Arpad moravam em Paris. Face à ameaça da invasão germânica, Maria Helena ainda tentou obter asilo em Portugal mediante a recuperação da sua cidadania (perdida por ter casado com um húngaro) desde que essa fosse extensiva ao seu marido, pedido que lhe foi negado pelo regime de Salazar – por suspeita de simpatia comunista dela e, provavelmente, pela ascendência judia dele – a menos que ela optasse pelo divórcio, o que seria impensável para ambos. Para o casal de artistas, que já tinha sentido na juventude o impacto de dois conflitos internacionais, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o fim da paz na Europa impôs, de novo, a procura de refúgio, desta vez noutro continente. O Brasil, lusófono, foi a escolha viável, embora o país vivesse sob o regime autoritário de Getúlio Vargas no homônimo Estado Novo (1937-1945).

Em junho de 1940, Vieira e Arpad desembarcam no Rio de Janeiro, cidade fervilhante de criatividade, então lugar de confluência e sobrevivência de refugiados de diversas origens, em que as artes plásticas, como os direitos civis, sofriam também do espartilho nacionalista, mas a literatura resistia. Encontraram alojamento, primeiro em Copacabana, depois no Flamengo e por fim, para melhor resistirem ao clima, instalaram-se no morro de Santa Teresa, na Pensão Internacional, administrada por um português, em condições que permitiram Maria Helena retomar a sua pintura enquanto Arpad preparava as aulas que deu a jovens artistas brasileiros.

Apesar da vista que tinham para a Baía de Guanabara e o Pão de Açúcar, o exílio deles, ainda que tropical, não foi dourado: um orçamento escasso, o calor abrasador, o ruído do mar, o bulício urbano e uma vida social que demorou a descolar, condicionaram a sua integração – mas “foi aqui que Maria Helena encontrou Vieira da Silva; foi em solo carioca que viveu a maior parte dos seus 30 anos, tempo de amadurecimento” (Valéria Lamego, Escrita Íntima, p.74-75). Neste período, com o seu brilho discreto e frágil, Vieira pintou obras poderosas como A Guerra (1942), L’Incendie e História Trágico-Marítima (1944).

Durante sua estadia no Brasil, entre 1940 e 1947, o casal construiu o seu oásis possível, no qual as amizades duradouras com Murilo Mendes, Cecília Meireles, Carlos Scliar, Eros Martim Gonçalves e Ruben Navarra integraram o seu núcleo duro de afetos e deram origem a algumas encomendas. Dentre essas, destaca-se a de Heitor Grillo, então diretor da Escola Nacional de Agricultura e marido da poetisa modernista: um painel de azulejos destinado ao antigo refeitório da ENA, em Seropédica, hoje Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Trata-se de um conjunto de oito peças figurativas, a maior das quais, ao centro, representa duas meninas colhendo frutos de uma laranjeira, motivo alusivo à árvore do conhecimento, que tem sido fonte de inspiração para várias gerações de estudantes.

Paulo Herkenhoff

Nascido no Brasil dois anos após a partida de Maria Helena e Arpad, e um ano depois da fundação do MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do qual viria a ser o primeiro diretor cultural, Paulo Herkenhoff é curador, crítico e historiador de arte. No seu longo percurso, destaca-se a direção dos Museus MBA-RJ e MAM-RJ, as funções de curador adjunto no departamento de Pintura e Escultura do MoMA-Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, para além de inúmeras curadorias relevantes para o conhecimento da modernidade e contemporaneidade no Brasil e nas Artes do Ocidente.

O testemunho que Herkenhoff oferece ao filme Vieirarpad sobre o período de exílio brasileiro do casal (entre 1940 e 1947), que foi fértil para ambos, e a interação de cada um com o meio artístico carioca, é generoso: sobre Vieira, afirma que “essa perspectiva vertical que corre na superfície da tela” tão presente na obra da pintora, “ela encontra essa possibilidade prática no Rio”, sendo “uma contribuição topográfica da cidade”, cuja afinidade com a capital portuguesa faz dela “uma cidade lisboeta”; a propósito da morada mais duradoura do casal no abrigo da Guerra na Europa, diz: “o lugar estratégico onde eles escolhem viver, em Santa Teresa, lhes permitiu um descortino, um cenário geográfico esplêndido e, ao mesmo tempo, a experiência da vastidão, a experiência de um mundo quase incomensurável” e acrescenta: “essa incomensurabilidade, essa geografia que vai se desdobrando para além do que a vista alcança, e com isso estimula o imaginário”, faz “pensar na Partida de Xadrez, que é seguramente uma metáfora da guerra (…) mas é sobretudo dizer ‘olha, a malha está aqui, a modernidade está aqui mas eu penso para além da modernidade: a modernidade não dá conta da minha imaginação espacial porque eu trago este inconsciente marítimo português’ (…)”. Nesse sentido, atribui a Vieira “a visão cartográfica de um mundo renascentista desenhado por Portugal”, estimulada pela escala do país que a acolheu, e é então que “encontra o seu esplendor como pessoa que consegue dar conta do espaço”.

Sobre o casal Vieira e Arpad, cuja “presença é indissociável”, Herkenhoff é certeiro: “A dimensão do afeto entre o casal Arpad e Maria Helena encontrou a sua imagem numa forma astronômica, que seria ela Bicho-Lua e ele Bicho-Sol” (citações recolhidas do filme).

No Brasil, já neste século, foram realizadas quatro grandes exposições sobre a obra de Vieira da Silva e de Arpad Szenes: em 2000, na Pinacoteca do Estado de São Paulo; em 2001, na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro; em 2007, no MAM de São Paulo, com a curadoria de Nelson Aguilar; e a última, “Vieira da Silva, Arpad Szenes: rupturas do espaço na arte brasileira”, realizada em 2011 no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, contou com a curadoria de Paulo Herkenhoff.

A não perder

O olhar, as mãos e os pincéis de Vieira deixaram um rasto poético atemporal sem o qual a História da Arte do século XX não seria a mesma. A história de amor vivida por Maria Helena e Arpad Szenes, revelada agora no seu esplendor íntimo e gráfico, é o núcleo doce do filme Vieirarpad , que resulta da orquestração de muitos talentos: da produção à realização, passando pela fotografia, pela montagem, pela música, pelos testemunhos e pelos contributos invisíveis – generosos todos, na vontade de celebrar ambos, para sempre.

NR: A autora colaborou nas traduções, revisões  e campanhas de comunicação do filme cujo trailer pode ser visto clicando em VIERARPAD , ainda não disponível para streaming.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Cézar Augusto Miranda Guedes

Vale visitar a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde se encontra a obra dos azulejos citados no artigo. Leia “Quem teme a arte e a cultura“, de Luiz Martins.