O maior problema da esquerda não foi o resultado da eleição, previsível, o problema é que a esquerda desaprendeu de analisar a conjuntura.

– Recentemente, escrevi um artigo sobre as eleições municipais e o Rio de Janeiro. Neste, vou me arriscar a fazer um panorama geral e falar do Brasil. E perdoem-me por escrever na defensiva, dialogando com debatedores imaginários, mas é que desde domingo li e ouvi, na esquerda, muitas análises pessimistas sobre os resultados, algumas catastrofistas, das quais eu discordo.

– Tenho duas premissas. A primeira é que não precisamos esperar os segundos turnos para reconhecer que a direita foi vitoriosa nas eleições municipais. As segundas voltas, em 27/10, são relevantes, especialmente em São Paulo, mas elas aumentarão ou diminuirão essa vitória da direita, apenas.

Walter Pomar, dirigente histórico do PT, apresentou em números essa vitória da direita: (1) 91 milhões de votos em candidaturas vindas das direitas, 22 milhões de votos para candidaturas lançadas pelas esquerdas; (2) 4.726 prefeituras conquistadas por candidaturas vindas das direitas, 740 prefeituras conquistadas por candidaturas lançadas pelas esquerdas; (3) 48.106 mandatos de vereança conquistados por candidaturas vindas das direitas, 10.308 mandatos conquistados por candidaturas lançadas pelas esquerdas.

– Então, não há como contestar: a direita foi vitoriosa nas eleições municipais.

– Mas aí começam as divergências. Teve gente boa dizendo, talvez em um surto autoritário, que estaria de má-fé quem negasse que o resultado foi uma tragédia para a esquerda; outro afirmou que a eleição foi um “strike na esquerda”; um terceiro escreveu que não podemos dourar a pílula, porque foi muito ruim… por aí vai.

– Pois eu entendo que a eleição não foi um strike, nem foi muito ruim, apenas teve um resultado previsível, por um lado, com alguns bons dados, por outro. E até posso estar errado, naturalmente, mas de modo nenhum estou de má-fé. Tenhamos serenidade.

– A segunda premissa é também simples: entendo que o resultado não foi uma “catástrofe” porque minhas expectativas eram realistas, com o perdão da presunção.

– Parte da esquerda parece que desaprendeu o que até fazia bem: análise de conjuntura. Arrisco dizer também que a diversidade das redes sociais impôs a hipérbole como ferramenta argumentativa trivial para se chamar a atenção e sair do anonimato em meio ao turbilhão de opiniões. Nesse contexto, uma análise sem apelos emocionais se tornou entediante. Além disso, convenhamos, a esquerda sempre teve uma quedinha pela melancolia.

– Assim, fazendo análise da tal da conjuntura, lembremos que Lula ganhou por menos de 2% dos votos em 2022, perdeu na maioria das cidades com mais de 200 mil eleitores, perdeu em todas as regiões, exceto no Nordeste, perdeu em todas as faixas de renda, menos naquela até dois salários-mínimos.

– Convive com uma oposição de extrema direita organizada e que fez o 08/01/2023 (e ainda não viu quase ninguém punido, exceto os bagrinhos); enfrenta a também agressiva e poderosa oposição neoliberal. São oposições com fortes presenças no Congresso, na mídia, no alto serviço público, no Judiciário, no Ministério Público e nas Forças Armadas. A esquerda sempre foi minoritária, por vezes residual, em todos esses espaços de poder.

– O governo Lula III está na contramão dessas forças, que estão espraiadas no mundo: um neoliberalismo decadente, mas que ainda tem força, especialmente na América Latina, e uma extrema direita que não é mais novidade, mas que não dá sinais de enfraquecimento. Chegamos ao cúmulo de ter um setor importantíssimo do governo, o Banco Central, que deveria ser do poder Executivo (que é do poder Executivo em todo o mundo, menos aqui), lhe fazendo oposição, em palavras e atos.

– Pelas reações às eleições, parte da esquerda parecia acreditar que a extrema direita foi um pesadelo fugaz, que iria desaparecer num passe de mágica, que os eleitores de Bolsonaro em 2022, especialmente no Sul-Sudeste, veriam a luz e mudariam radicalmente de opinião. Eu não tinha essa esperança, a luta será longa e racionalmente não se podia esperar uma guinada de 180 graus.

– Teve um analista, que respeito muito, que chegou a afirmar que a “derrota em Curitiba enfraqueceria a Gleisy” (como presidenta do PT, pelo que entendi). Derrota em Curitiba era imprevisível? A cidade que tinha inicialmente Moro como líder das pesquisas para prefeito, mesmo depois de tudo o que se sabe contra o abominável ex-juiz, elegeria alguém de esquerda ou apoiado pelo PT? Foram perguntas retóricas, naturalmente, e penso que faltou perspectiva ao respeitável professor.

– Uma outra parte da esquerda aproveita para fazer a luta política, especialmente contra Fernando Haddad, conectando o alegado fracasso nas eleições com as medidas econômicas do governo, especialmente o arcabouço fiscal. Eu não vou neste artigo fazer a defesa ou a crítica do governo, mas não acredito que o resultado tenha algo a ver com um suposto neoliberalismo entranhado no Ministério da Fazenda.

– Para completar, não posso deixar de falar em três questões que considero, digamos, triviais: primeiro, as pesquisas. Então, qual a surpresa? Salvo um caso ou outro, as pesquisas, desde o início, estavam mostrando que o resultado seria o que vimos; dessa vez elas captaram bem os votos da extrema direita, por exemplo.

– Isso talvez indique que a extrema direita está se adaptando à institucionalidade, digamos assim, e após um período de estridência e golpismos explícitos, ela acabe se misturando majoritariamente no grande caldeirão da direita e dentro de um tempo será indistinguível. Não estou dizendo se isso é bom ou ruim, apenas arriscando uma interpretação.

– A segunda questão trivial é que a esquerda nunca venceu eleições municipais, nem chegou perto. Conforme dados informados acima, foram 740 prefeituras conquistadas por candidaturas lançadas pelas esquerdas e acredito que não tivemos antes números muito superiores. Isso significa, perdoem a redundância, que a direita sempre foi vitoriosa nas eleições municipais no Brasil.

– A terceira e última questão trivial é que as eleições municipais não são nacionalizadas ou ideologizadas, salvo para uma parcela menor do eleitorado. Talvez tenha crescido o índice de nacionalização e/ou de ideologização, mas isso precisaria ser confirmado por pesquisas e ainda não li nada a respeito.

– Em uma eleição para presidente, por exemplo, há mais clareza do que significam as posições ideológicas, mas isso não ocorre numa eleição municipal, por diversos e interessantes motivos que não cabem analisar aqui.

– Diante desse quadro, há bons dados: o PT aumentou em quase 40% o número de prefeituras e em mais de 20% o número de vereadores, em relação a 2020. Longe ainda dos números de 2012 (o máximo que o partido alcançou), mas parou de cair, saiu do fundo do poço e teve uma boa recuperação.

– Ao contrário do que li em algum lugar (foram tantas as análises), penso que um dos fatores para se analisar êxito ou derrota é, sim, a comparação. Não olhar para o passado recente significa perder um dos principais meios de contextualização e o que vemos é que a esquerda vinha caindo fortemente, desde 2016, agora o PT teve boa recuperação e o PSOL está no segundo turno em São Paulo, o que não é pouca coisa.

– O outro bom dado é que a extrema direita terá menos prefeitos apoiando-a em 2026, seja porque a esquerda cresceu um pouco, seja porque o “Centrão” (nesse conceito incluo todos os que estão fora da esquerda e não estarão necessariamente com Tarcisio ou outra candidatura de extrema direita em 2026) venceu a maior parte das prefeituras.

– Para esse espectro político tipicamente brasileiro ainda importa minimamente quem está em Brasília e em 2022 era Bolsonaro, em 2026 será Lula. O governo Lula tem fraquezas institucionais, por vezes vive no fio da navalha, mas tudo indica que chegará íntegro e com resultados a apresentar em 2026. Isso tem importância para o Centrão.

– Sim, há motivos para preocupação e menciono apenas dois: São Paulo e Porto Alegre. Pablo Marçal ainda não foi devidamente explicado; o próprio Ricardo Nunes representa, em São Paulo, o que Claudio Castro é no estado do Rio, ou seja, um governante marionete, que não manda em nada, o que pode representar uma preocupante tendência a se espraiar pelo Brasil, mais um motivo para lutar pela eleição de Boulos. A derrota quase certa do PT em Porto Alegre para o mesmo prefeito que comandava a cidade no momento de sua maior catástrofe tem significados muito ruins, talvez um sinal de desintegração política e social na capital do Rio Grande no Sul.

– Essas e outras situações preocupantes devem ser objetos de debates, mas o fato é que não foi uma tragédia como se anunciou. Vejo muita ansiedade e pouca frieza nas análises, seguida pela “depressão”; o apontamento de muitos problemas, mas de poucos caminhos; muitas hipóteses interpretativas dos Pablos Marçais, sem apontar como superá-los; muita constatação de que “as esquerdas não estão sabendo se comunicar”, mas sem dizer como se comunicar.

– O maior problema da esquerda não foi o resultado da eleição, previsível e que, de resto, não mudou o jogo. O problema é que a esquerda virou um turbilhão de indivíduos isolados gritando nas redes sociais; a esquerda não se encontra mais para pensar junto; os partidos não têm o mesmo espaço para debates, como antes; as pessoas nem têm tempo para militar e participar de processos de formação. Até porque não há quadros para interpretar a linguagem desse mundo que emergiu nos últimos 10 anos – ainda não estão formados.

– Então, vamos para 2026 com o que temos, tentando aprender e melhorar no caminho, mas estamos no jogo e não adianta ficar deprimido, a direita virá com força.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli Revisão: Celia Bartone

Artigos sobre as eleições municipais de 2024:  “Pílulas sobre as eleições municipais e o Rio de Janeiro” de Mauro Abdon e “Domingo para reflexão” de Luiz Marques.