Comentário aos “Comentários a um Delírio Militarista” de Manuel Domingos Neto (org.)
Reformas são necessárias. No Brasil da realidade concreta e não da abstração do projeto neoliberal da “Ponte para o Futuro” e da fantasia circense de Guedes, um governo comprometido em reformar para aprofundar a democracia deve ser capaz de formular um projeto de nação com reformas institucionais e medidas imediatas de geração de emprego, erradicação da pobreza e redução da desigualdade. Quem tem fome tem pressa. Quem não tem emprego não tem renda. Não se sustenta, nem a sua família. Perde gradativamente a sua dignidade humana.
Lançado em maio de 2022, o “Projeto de Nação – O Brasil em 2035” não representa oficialmente o pensamento das forças armadas (FFAs), mas articula o conjunto de ideias correntes nas corporações armadas. No momento em que no atual (des) governo os militares estão presentes em quase todas as áreas da administração pública e parece que não querem largar esse oficio, a sociedade precisa saber e estar atenta sobre que essas corporações pensam.
O documento “O Brasil em 2035” é um projeto que desenha um futuro desejado por militares com um país exportador de matérias-primas, com maior desigualdade social, com liberdade restringida, submisso e dependente do bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos. Essa visão de futuro é um devaneio subjetivo (a redundância é explícita) que projeta o destino da sociedade brasileira segundo a ótica de que a política é a continuação da guerra. Essa inversão da famosa frase de Clausewitz forma o núcleo duro da estratégia definida que trata os adversários como inimigos e a política como uma guerra.
O livro “Comentários a um delírio militarista” organizado pelo professor Manuel Domingos Neto é um alerta à consciência democrática nacional. Foi o resultado de uma série de seminários realizados no primeiro semestre de 2022 com intelectuais, professores e pesquisadores que participam da resistência democrática e analisam criticamente o documento que glorifica o passado colonial-escravista, defende o conservadorismo nos costumes, o neoliberalismo radical e se alinha com a fase mais truculenta da ditadura.
A geopolítica em que o documento se insere explicita a proposta militarista sobre as opções estratégicas do Estado ao examinar a inserção do Brasil na cena internacional e aponta para a velha orientação da Guerra Fria: o “Projeto de Nação” opta pelo alinhamento aos Estados Unidos.
Essa opção geopolítica conforma uma proposta de que o Brasil retorne à antiga condição de exportador de commodities e não discute nesse contexto quais são as perspectivas de resolver o problema da insegurança alimentar. O retorno ao liberalismo primário-exportador interrompeu o processo que visava a autonomia do país. A mitologia relativa ao desenvolvimento baseado no agronegócio é desmontada ao se mostrar que a exportação de minérios gera pouca oportunidade de emprego, não diversifica a economia, aprofunda a vulnerabilidade estratégica e agride a natureza. Diferentemente de uma agricultura destinada a eliminar a fome com a produção de alimentos saudáveis.
Ao reproduzir a velha concepção de segurança nacional interna da ditadura, o documento trata a comunidade acadêmica como inimiga da sociedade pela falta de respeito aos valores conservadores tradicionais. Essa ideia de que a universidade é um celeiro de pervertidos é refutada e demonstra que se trata de uma instituição indispensável à construção de uma sociedade desenvolvida e respeitosa da dignidade humana.
A pesquisa científica e a inovação são referenciadas no documento de forma inconsistente e confusa, em linha com a concepção de inserção internacional submissa. Não existe uma proposta estratégica para a reestruturação do sistema nacional de inovação e da prioridade para os sistemas produtivos geradores de progresso técnico e inovação.
A proposta de disseminação do “ensino cívico-militar” é central no documento e se enquadra no que denominam como “coesão nacional e sentimento coletivo de pátria”. Na crítica a essa concepção se afirma que a coesão social de inspiração liberal-conservadora aprofunda a fragmentação da comunidade brasileira. Hoje, milhares de adolescentes são instruídos no espírito da caserna, em franco desrespeito à Constituição.
As manifestações de insensibilidade com o sofrimento dos brasileiros contidas no projeto revelam-se nas propostas de desmonte do aparato estatal de saúde e na sua privatização com o desmonte do SUS.
O desenvolvimento da Amazônia proposto no documento reproduz a concepção colonialista do projeto de nação com a sua postura tecnocrática diante dos povos originários. E desconsidera as catástrofes ambientais, o que caso colocado em prática como proposto nos reserva um futuro catastrófico.
O “Projeto de Nação” imagina que o Brasil, em 2035, contaria com um “Centro de
Governo” preparado para orientar, coordenar e “garantir a convergência de estratégias e ações estratégicas” por meio de “técnicas, ferramentas e práticas flexíveis e adequadas às diferentes realidades existentes entre instituições e nas unidades da federação”. Considera que reformas institucionais neste rumo já estão em curso e resultam do fato de os militares emprestarem à política categorias usadas na guerra. No desenho do documento a Secretaria de Assuntos Estratégicos teria sido elevada ao nível de superministério em consonância com a ideia de que regimes totalitários necessitam de serviços de inteligência bem estruturados e orientados para a repressão dos que contestam a vontade dos governantes.
O documento reproduz as mudanças no establishment que se desenvolveram desde o ingresso passivo e subordinado do Brasil na onda globalizante dos anos 1990. Esse processo levou ao surgimento de uma tecnocracia antidesenvolvimentista, que compreende os militares, portadora de valores mercantis no comportamento em relação ao público. Face à sua apregoada competência, esta tecnocracia fez-se importante na tomada de decisões e no exercício do poder com a valorização de técnicas gerenciais na formação dos militares brasileiros neste período. Trata-se de um fenômeno inspirado na “revolução dos assuntos militares” desenvolvida nos Estados Unidos.
Essa burocracia tecnocrática militar, supostamente meritocrática, permanece com a concepção estruturante de que para o Brasil chegar em 2035 como uma sociedade em paz interna precisa construir um aparato repressivo que garanta a segurança dos de cima contra o descontentamento dos de baixo. O delírio militarista pressupõe supressão das liberdades. A soberania popular é substituída pela vontade dos detentores da força e compreende a subtração da autoridade civil sobre a formação do policial-soldado. Assim, o Estado dedica-se a formar homens que percebem a cidadania como inimiga. Em consequência, temos um sistema prisional fora da lei, com superpopulação sistêmica, práticas de tortura normalizadas, enfim, um “depósito imundo de gente pobre”, predominantemente negra, invisível para a maioria, o que mostra os desdobramentos do colonialismo escravista. Os autores do documento estariam mais voltados para projetar sua vontade de domínio sobre a nação, que percebem como dádiva do quartel.
A crítica ao documento presente nos “Comentários a Um Delírio Militarista” reafirma a precedência da política. O poder civil deve comandar o militar que não é um poder, mas uma instituição do Estado. O poder político legitima-se com eleições e não com o princípio do mando, com o burocrata ou o especialista estatal. Reconhecer a supremacia da política é afirmar o valor da democracia. A prática da democracia para ser aprofundada, ao contrário do que pensam os liberais-conservadores, deve ser assim permanentemente contestada e reafirmada pela prática e, assim, consolidará seu valor para a sociedade.
A utopia autoritária, “O Brasil em 2035”, de reconstruir e consertar baseia-se na velha ideia castrense de que eles eram e são superiores aos civis em questões como patriotismo, conhecimento da realidade brasileira e retidão moral. Essa natureza superior lhes concede uma autoridade moral que, no limite, chega a incluir a aniquilação da ação política inimiga.
Esse delírio castrense como exposto no “O Brasil em 2035”não vai nos conduzir a vencer os nossos tormentos históricos: a exclusão social legada pelo escravismo colonial, a mentalidade predatória e o atrelamento a potências estrangeiras. Em consequência, “Comentários a um delírio militarista” é um alerta para a tomada de consciência do projeto autoritário, que sofreu uma derrota, mas continua presente e com força redobrada e renovada na sociedade brasileira.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Clique para ler do mesmo autor o artigo “O Bozo não é pato manco” publicado em 2021 e de Luis Vignolo “Uruguai de Bases Jamais a Bases Forever“.