Comentários sobre “Camisa de Força Ideológica”, de André Lara Resende

Como grande admirador de André Lara Resende pela sua irretocável trajetória e ideias/pesquisas sempre na fronteira do conhecimento e estado da arte da ciência econômica, e após ter lido seu fabuloso livro Camisa de Força Ideológica, Portfolio Penguin, permito-me, aqui, humildemente, resenhá-lo.

O autor deixa muito claro no seu ensaio que a teoria monetária neoclássica, seguindo princípios ideológicos liberais de não intervenção do Estado na economia, sempre buscou impor limites à capacidade estatal de dar crédito e criar poder aquisitivo. O Estado seria um “mal infelizmente necessário que deve ser asfixiado e reduzido ao mínimo possível.” Para tanto, primeiramente, a ortodoxia monetária instaurou o dogma da Teoria Quantitativa da Moeda que, finalmente, caiu por terra ao se mostrar totalmente falaciosa ao ensejo da crise de 2008, com o Quantitative Easing, que decuplicou a base monetária internacional sem a ocorrência de qualquer efeito inflacionário. Mais recentemente, os neoclássicos liberais, desejando acima de tudo limitar o poder do Estado e dos governos eleitos, lançaram mão do dogma da existência de um tal limite instransponível da relação Dívida/PIB, onde se encontraria, na espreita, o perigo de uma debacle fiscal. De fato, é necessário redefinir corretamente o conceito de responsabilidade fiscal. O crédito público não está sujeito a limites técnicos ou naturais, mas sim institucionais, politicamente definidos e, assim, a responsabilidade fiscal não pode ficar restrita à existência de equilíbrio orçamentário em todas as circunstâncias.

Diz o autor:

  • “A teoria monetária, desde seus primórdios, é um arcabouço conceitual que, sob a pretensão de neutralidade científica, sempre teve como objetivo restringir o poder estatal em expandir crédito e criar poder aquisitivo. Há fortes e boas razões para impor limites ao Estado, sobretudo àquele que dispõe de sua moeda fiduciária, que, quando irrestrito, se torna efetivamente todo-poderoso. Mas a macroeconomia neoclássica, dominante entre analistas, homens de negócios e a grande maioria das pessoas públicas – principalmente depois da contrarrevolução que a partir dos anos 1980 reverteu o domínio das ideias de Keynes -, é um garrote ideológico. A exigência de equilíbrio anual das contas públicas, sem considerar as circunstâncias e sem dar tratamento distinto para os gastos correntes e os gastos de investimentos, paralisa a imprescindível atuação do Estado.”

O autor constata que algumas das distorções do dogmatismo fiscalista e da ortodoxia monetária passaram a ser questionadas não somente por acadêmicos independentes como também pelo próprio Banco Mundial, BID, FMI, Banco da Inglaterra e Banco Central Europeu.

A primeira discordância básica com a macroeconomia neoclássica é que:

  • “sem um Estado competente e responsável não há como pensar em desenvolvimento, agora com a obrigação de ser socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável.”

Daí ser indispensável um consenso sobre governança do Estado, sem inibir sua capacidade de criação de crédito.

O segundo ponto de discórdia reside no fato de a ciência econômica estar longe de ser uma ciência exata e suas teorias, inevitavelmente, e por mais sustentação empírica que contenham, sempre decorrerão de posicionamentos ideológicos. Assim, os elegantes modelos matemáticos criados pela economia neoclássica só funcionam com o cuidadoso balizamento de premissas irrealistas que traduzem a ideologia do liberalismo e de suas teorias ultrapassadas.

O terceiro ponto crucial tem a ver com a moeda. Moeda é dívida pública, perpetuidade que não paga juros. Ela é o registro de direitos na autoridade central que é aceito para quitar obrigações tributárias. Uma unidade de conta da economia, estritamente fiduciária e uma unidade de crédito sem lastro contra o Estado. Por convenção, moeda é um passivo do Banco Central e dívida do Tesouro Nacional, mas tanto uma como a outra são passivos do Estado.

Outro ponto de divergência é que a macroeconomia convencional afirma que todo investimento deve ser financiado unicamente pela poupança, canalizada pelo sistema financeiro cuja função precípua seria a de intermediação entre quem poupa e quem investe. O autor mostra que tais dogmas e conceitos se tornaram anacrônicos, à luz da evolução dos ciclos econômicos. O crédito público é, sim, uma poderosa arma de criação de poder aquisitivo. Não há nenhuma restrição técnica para o livre funcionamento da criação de crédito pelo Estado e, por delegação do Banco Central, pelo sistema bancário. Trata-se, sim, da imposição de uma camisa de força ideológica, travestida de barreira técnica. O acesso aos fundos do Banco Central faz dos Bancos concessionários do Estado na emissão de crédito e na criação de poder aquisitivo. Assim, os Bancos independem de depósitos do público, de renda poupada, para dar crédito. E a taxa de juros é determinada pelo Banco Central e não pela oferta e demanda de fundos para investimentos, como apregoava o modelo IS-LM.

Quanto aos juros, riscos e prazos da dívida, o autor assevera:

  • “Existe risco na dívida pública denominada em moeda estrangeira, mas não existe risco de crédito na dívida pública denominada em moeda nacional. A taxa de juros de um dia, overnight, é a taxa sem risco para o prazo mais curto da economia. Por isso é chamada de taxa básica. Essa é a taxa que o Banco Central cobra, ou paga, para emprestar, ou tomar, reservas bancárias do sistema financeiro por um dia […] O prêmio, nos prazos mais longos da dívida, é efetivamente um prêmio de risco de carregamento e de que a trajetória da taxa básica possa vir a ser superior à prevista, não risco de crédito do Estado […] o Banco Central pode sempre recomprar ou refinanciar a dívida no mercado com a emissão de reservas bancárias. Por isso a dívida pública é hoje extremamente líquida, mesmo para grandes valores, negociada em mercado sem deságio e em questão de segundos. Toda a reserva de liquidez do sistema financeiro é mantida em títulos públicos.”

O aumento da taxa de juros é contracionista, reduz a demanda agregada através do maior custo de crédito para o setor privado, mas é expansionista através do aumento da renda transferida pelo Estado para os detentores da dívida.

O impacto da taxa de juros sobre as contas públicas é negativo pois aumenta o serviço da dívida e o déficit do Tesouro. É também regressivo do ponto de vista distributivo, uma vez que aumenta a transferência de renda para os agentes superavitários detentores da dívida.

Por outro lado, a criação pelo Estado de poder aquisitivo sem colocar em risco o sistema de contabilidade da sociedade é possível e acontece quando há necessidade de mobilização de recursos para aumento da produção de bens e serviços. Um dos casos é quando existe capacidade instalada ociosa, por falta de demanda. Neste caso, o Estado pode e deve atuar de forma anticíclica, criando poder de compra para estimular a economia. A outra situação é quando existe capacidade potencial não efetivada. Cumpre ao Estado, junto com o setor privado, viabilizar o aumento de produção através de investimentos produtivos. Expansão do crédito sem capacidade de produção gera pressão sobre preços dos bens e serviços (inflação convencional). Por outro lado, se os preços dos ativos e dos direitos forem inflacionados pela expansão do crédito sem aumento da capacidade produtiva, não há aumento da riqueza, apenas ilusão monetária, ou hipertrofia de ativos e passivos (inflação financeira).

Segundo o autor, têm existido recentemente reavaliações dos conceitos da economia neoclássica, principalmente no tocante ao endividamento público:

  •  “A reavaliação foi feita a partir da constatação de que, se a taxa de juros da dívida é menor do que a taxa de crescimento da economia, a relação dívida/PIB não terá uma trajetória explosiva […] Sabe-se também que a taxa de juros, por si só, é um instrumento menos poderoso do que se imaginava para desaquecer a economia e controlar a inflação.”

Outro aspecto realçado é o de que as políticas monetária e fiscal são indissociáveis e suas gestões têm de ser sincronizadas.

A importante dissociação da decisão de investimentos públicos da questão orçamentária anual é outra recomendação do autor, sugerindo também transferir tal avaliação para o âmbito de um orçamento plurianual.

No tocante ao endividamento, o autor comenta que:

  • “A dívida pública é um passivo do Estado e um ativo do setor privado.”

O Estado exerce o importante papel de emprestador de última instância para socorrer o sistema financeiro em momentos de crise e a taxa de juros é uma variável de política do Banco Central. Nos mercados modernos, dívida é extremamente líquida e tem garantia de ser refinanciada pelo Banco Central.

E o autor finaliza:

  • “Na prática, a desconfiança elitista e tecnocrática em relação aos políticos na democracia representativa impede a revisão do quadro institucional. Fica patente, nas sociedades muito desiguais, o irremediável conflito entre democracia e governança tecnocrática. Não se pode ter democracia sem reduzir a desigualdade, mas não se reduz a desigualdade amarrando as mãos do Estado na camisa de força ideológica da macroeconomia neoclássica.”
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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