Você não me pergunta sobre a fome, mas vou lhe falar mesmo assim. Porque é preciso lembrar dos invisíveis, perturbar essa paz cruel, feita de surdas preces. É absolutamente necessário voltar à praça, pregar a inutilidade do evangelho da indiferença, chamar de volta a humanidade. Levantemos esse véu.

Veja: debaixo dos viadutos, por entre grades de janelas, nas entradas dos supermercados, em opacos rostos colados ao vidro fumê dos automóveis, nessas tocaias da mais tresloucada esperança, lá estão eles – os excluídos, com seus canevases de parcas cores, traçando os contornos de uma existência demodé, continente desbotado no grande oceano de novidades. São milhões. Corpos tomados por uma certeza absoluta, adentrando, sem ser convidados, o admirável mundo novo desejado por executivos, capatazes e presidentes.

A fome crônica é latifundiária, mas também singela, sem luxos. É a que sempre foi, de ontem e de anteontem, impaciente alfaiate, a desastrada costureira de tecidos. Ao mesmo tempo velha e remoçada a cada dia, senhora de caprichos mal refletidos nos olhos úmidos desses comedores de luz. Não tem marketing nem território fixo; a fome abarca tudo o que existe, infinitamente soberana por onde trafegam sangue e ar. Ela simplesmente é: verdade de corpo e de alma, superior a quaisquer dogmas ou liturgias.

Não se esqueça, porém, que há tempos – pelo menos desde a revolução da máquina e do trabalho racionalmente organizado – a fome é também obra social, desajeitada cria do Frankenstein das forças de mercado, vetor torto da economia política que esmaga os menos organizados, tangendo-os para lugar nenhum. No mundo atual a fome movimenta-se como legítimo subproduto do poder financeiro, em todas suas matizes e transfigurações. Sovada por simpáticos Gauleiters de bolhas especulativas, pelos administradores de derivativos e por outros viajantes espaciais dos bens de mercado futuro.

Sinta a ironia: a fome é imediatista, renega qualquer ideia de futuro. Existe uma gestão coletiva da fome e ela demonstra ser instituição social criativa: reproduz-se, aprende, adapta-se. Cria cartografias de poder. Alimenta-se, por assim dizer, do progressivo abandono do outro, de sua expulsão da mesa invisível, de onde caem as sobras da riqueza coletivamente produzida.

Na pandemia de Covid-19 a retomada do aumento do número de famintos e mal alimentados encontrou solo fértil no Brasil. Essa fabricação de ausências foi reforçada por uma contínua desativação de programas sociais do governo federal; pela supressão ou deslocamento de rubricas orçamentárias; pela desmobilização de cadastros de pobreza e pelo indesculpável descarte da experiência. Um desejo de retornar ao passado inglório, que até há pouco parecia se distanciar no retrovisor.

Como abominável presente surge essa destruição contínua, seletiva, feita da bricolagem de organogramas administrativos fusionados e de competências suprimidas, de efeito potencializado pela revogação tácita ou explícita de direitos e de garantias fundamentais. Entortam o quadro constitucional para torná-lo retrato dos novos donos, porque os missionários da já velha crença neoliberal querem salvar-se ao preço da expiação alheia. É por essa fé que mantêm, com generosidade peculiar, salários e auxílios congelados, decretam medidas restritivas, sem autêntico planejamento nem forma de compensação.

Esses muitos senhores e poucas senhoras, ditos cristãos e patriotas, não admitem reparos nem contradita – pois no ato mesmo da fala oficiosa instituem inimigos silenciados. Nesse modelo às avessas é que foi extinto, sem qualquer mais nem menos, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e também o exitoso programa da Bolsa Família. Ao encontro coerente disso vieram o fim de políticas de preços de alimentos populares e do fomento ao pequeno produtor.
Não era suficiente: os próprios conceitos técnicos precisavam ser esvaziados retoricamente, como o de emergência pública, a medicina preventiva de baixo custo e o acesso facilitado a medicamentos em farmácias populares. Critérios insondáveis ocuparam o lugar do agora inexistente. Mas não faltaram energia nem recursos para frases de efeito e eventos midiáticos, como quando o ministro da Economia flamejou, com ira santa, contra o tamanho do prato de comida dos abastados. Esqueceram, porém, de combinar com a fome e com os famintos, e eles simplesmente não respeitaram a ordem de não mais existir.

Como disse Galileu, em sua teima de realidade, eppur si muove: há um vírus viajante trazendo a lição pandêmica de que é possível transmutar-se continuamente, permanecendo o mesmo. Para desengano de muitos, a pandemia não igualou os brasileiros na morte e na solidão. Nonada, até nisso somos desiguais.

Surgiram números da revelação, algoritmos se pronunciaram: durante a pandemia as riquezas nacionais cresceram ainda mais em mãos já abastadas; aumentaram os rebanhos de famintos, espalhando-se pelas cidades, em contraexemplos vivos da meritocracia e do empreendedorismo, colchões rotos lançados sobre as calçadas.

Com tudo isso há, porém, uma boa nova para lhe dar, em ofertório de despedida: o vírus da Covid é “solidário”, ele nasce e vive em pleno sentido de coletividade. Essa comunidade microscópica resiste pela capacidade de agir em conjunto, de ter uma prática ecológica radical e sempre mutante, criando assim uma espécie de programa cognitivo, feito por minúsculos pesquisadores práticos da vida. Nós não podemos fazer algo semelhante, agindo de forma coordenada e contínua? Certamente. Então a fome de tantos desejos, domesticada, nada mais será do que impulso de vida, breve intervalo de tempo enquanto não lhe acode a mão da liberdade.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli

Sobre o tema, leia também “A fome“, de Julio Pompeu.