Ilustração: Mihai Cauli

No “Manifesto da Poesia Pau Brasil”, publicado em 1924, Oswald de Andrade lançou uma flecha inteligente e o alvo era o sentimento e o pensamento dominantes de nossas elites: “ver com olhos livres”. Seu apelo era no sentido de buscar um olhar curioso sem medo das singularidades culturais do Brasil, ao invés de replicar servilmente as noções estéticas vindas dos países centrais. Essa subordinação foi e continua sendo um fenômeno cultural total, válido igualmente para o conhecimento aplicado nas políticas de desenvolvimento em sua acepção mais elevada. Mas atenção: o que está em consideração são políticas inovadoras. Para conservar, basta congelar o presente e alguma dose de oportunismo e esperteza para perceber quando “algo deve mudar para que tudo continue como está”, na bela assertiva de Giuseppe Lampedusa.

A partir da crise de 2008 e principalmente com a pandemia, muitos economistas que estavam afastados da tradição keynesiana começaram ou voltaram a pensar em formulações mais efetivas para a retomada da economia, visando recuperar a produção e o emprego. Será muito positivo que essa busca de referências inclua também outros economistas contemporâneos a J. M. Keynes (1883-1946) que vivenciaram períodos turbulentos como a crise de 1929 e a Segunda Guerra Mundial. Um dos principais destes autores é o polonês Michal Kalecki (1899 -1970).

A maioria das escolas do pensamento econômico nasceu na Europa e nos Estados Unidos, núcleo orgânico do capitalismo, o que dá no mesmo para nossas considerações. Os autores ligados ao pensamento crítico também fazem parte desse grupo. Até aí nada de novo, pois a transmissão e a criação do conhecimento dependem da divisão social do trabalho e esta requer variadas formas de riqueza e financiamento.

O problema da economia é que ela não é ciência pura, mas também e principalmente, política e arte. Ou seja, requer conhecimento empírico e aplicado que condiciona a aderência do conhecimento ao seu objeto.

Kalecki, de forma independente e quase simultânea a Keynes, no âmbito do que no pós-guerra viria a se denominar de macroeconomia, elaborou uma teoria com inúmeros pontos de confluência com a teoria desenvolvida por Keynes. Sua atividade acadêmica esteve ligada à London School of Economics, às Universidades de Oxford e de Cambridge e à Escola de Economia de Varsóvia, esta última com mais regularidade e em períodos distintos.

O desenvolvimento econômico em países com industrialização retardatária

Entretanto, diferentemente de Keynes e da maioria dos economistas que participavam do debate econômico plural e qualificado de sua época, as análises de Kalecki não tinham por base apenas as economias desenvolvidas e trouxeram para o centro de suas considerações a dinâmica capitalista em economias subdesenvolvidas, assinalando alguns de seus principais problemas de crescimento e emprego. Este é o ponto que desejamos destacar e isso não é pouco, pois diz respeito à representatividade majoritária dessas economias no cenário mundial.

Vale assinalar que depois de trabalhar na Polônia e Inglaterra, Kalecki exerceu a função de vice-diretor do Departamento de Assuntos Econômicos na ONU recém-criada, durante a segunda metade dos anos 40. Ao sair da ONU, trabalhou como assessor econômico de governos em Cuba, Índia, Israel, México e Polônia. A divulgação e incorporação das concepções de Kalecki em análises econômicas na América Latina tiveram como figura destacada o economista chileno Julio López Gallardo (1941-2020). No Brasil, alguns economistas como Maria da Conceição Tavares e Jorge Miglioli têm trabalhos em que se utilizam da perspectiva de Kalecki e dialogam com ela.

A elaboração kaleckiana parte da constatação de que suas conclusões sobre a dinâmica econômica, assim como as de Keynes, não eram suficientes para as economias subdesenvolvidas no que diz respeito à primazia teórica da demanda efetiva. Ainda que toda a capacidade produtiva dessas economias fosse utilizada, mesmo assim seria limitada para empregar todo o contingente de força de trabalho disponível e gerar níveis de renda compatíveis com as necessidades da população. Sua tese é a de que o problema central das economias desenvolvidas é a insuficiência de demanda efetiva, ao passo que nas subdesenvolvidas é a insuficiência de capacidade produtiva. Portanto, o problema crucial nessas economias não é o aumento do investimento para gerar demanda efetiva – como no caso de uma economia desenvolvida com desemprego –, mas para acelerar a capacidade produtiva indispensável ao rápido crescimento da renda nacional.

Kalecki aponta ainda três tipos de obstáculos à aceleração do investimento. Em primeiro lugar, pode ser que o investimento privado não se efetive a uma taxa desejável. Em seguida, pode haver deficiência de recursos físicos para produzir mais bens de investimento. Por fim, mesmo que as duas primeiras dificuldades sejam superadas, haverá ainda o problema do suprimento adequado de gêneros essenciais de consumo para cobrir a demanda resultante da expansão do emprego.

A conclusão é que, enquanto nos países desenvolvidos o problema se resolve por truques financeiros via déficit público, nos subdesenvolvidos falta o investimento para ampliar a capacidade produtiva, e não para incrementar a demanda. Ainda segundo o economista polonês, a superação desse quadro está ligada à necessidade de reformas, como a da política fiscal (marcadamente regressiva nos países subdesenvolvidos), e à questão agrária. Nessa perspectiva, assinala que poderia até haver certo consenso quanto às medidas a serem implementadas, mas permanecem os obstáculos políticos que impedem sua realização.

Nesse sentido, a análise kaleckiana aponta para um problema de difícil solução: uma agenda inflada de desafios econômicos e políticos para os países subdesenvolvidos, onde a macroeconomia tinha o que dizer, mas não bastava, pois não se tratava apenas de manejar o gasto público colocando adrenalina numa economia pronta para reagir. O desafio seria maior na medida em que ainda teria de se criar a capacidade produtiva e, não menos desafiante, planejar e financiar esse crescimento simultaneamente à gestão macroeconômica.

Os bancos de desenvolvimento

No caso brasileiro, o equacionamento desse nó político e econômico teve seu marco na criação do BNDE em 1952 (que só ganhou o S a partir do Plano Cruzado em 1986). A motivação foi exatamente a de criar alternativas de financiamento de longo prazo para o setor público e privado, assim como capacitar o planejamento destes investimentos de longa maturação, especialmente de transporte e energia nos primeiros anos de vida do Banco de Fomento no Brasil. Claro que nesses quase 70 anos, a agenda se ampliou muito e passou por diferentes orientações. Mas sempre cumpriu seu papel nos financiamentos de longo prazo, que os bancos privados não cumprem no Brasil.

Para o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, isso havia sido resolvido pelo mercado de capitais, com a Bolsa de Valores. Mas esse não foi o contexto da quase totalidade das demais economias nacionais. Mesmo para a Alemanha e Japão, que já articulavam uma relação entre bancos e indústrias ainda na primeira metade do século passado e também para a maior parte das experiências internacionais em países que se industrializaram tardiamente na segunda metade do século XX, a criação de Bancos (públicos) de Desenvolvimento foi fundamental devido à inexistência de um mercado financeiro privado desenvolvido. Este foi o caso de alguns países latino-americanos e europeus, como também o da Índia, Coreia do Sul e China.

Claro está que a existência do banco de fomento por si só não garantiu o sucesso das distintas experiências de industrialização e sua inserção no comércio internacional. Até porque há problemas técnicos e econômicos de escala nas grandes infraestruturas, que derivam também de sua vocação geopolítica. Vale lembrar que o embrião da União Europeia foi gerado com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço em 1952. Ademais, são necessárias outras ações no campo da educação, ciência e tecnologia, assim como deve haver cobrança de metas pelas empresas beneficiadas e na elaboração e gestão das políticas industriais e comerciais soberanas, a exemplo do caminho seguido pela Coreia do Sul e China.

É curioso o quanto o papel cumprido pelos bancos de desenvolvimento não costuma ser evidenciado – ou até pior, esses bancos são apresentados como algo do passado, que tiveram função em outra fase da economia mundial.

Devemos considerar uma série de problemas e questões no percurso dos bancos de desenvolvimento no Brasil e no mundo, sendo dois dos principais a transparência e a ausência de contrapartidas socioambientais e trabalhistas, já que não se trata de bancos comerciais, mas de bancos de fomento. Em que pese tudo isso, a montagem de uma economia industrial de maior complexidade nas economias de industrialização retardatária seria impensável sem a existência de bancos de desenvolvimento.

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