O filme representa um facelift para a Mattel Inc. e uma leve demolição muito bem controlada do patriarcado. Mas acaba se tornando exatamente aquilo que critica: empoderar-se não é a mesma coisa que ter poder real.

Eu não tinha intenção de ir ao cinema para assistir “Barbie”. Ou qualquer outra coisa, na verdade. Em primeiro lugar porque desde a chegada das plataformas de streaming é uma verdadeira imbecilidade gastar quase oito euros por uma poltrona numa sala lotada, com o ar condicionado ao máximo, para ver um filme que você não pode pausar quando quiser, nem ouvir no volume que lhe seja mais cômodo. Sei que estou envelhecendo porque descobri uma nova mazela: o som surround me dá dor de cabeça.

A segunda razão é que “Barbie” não atraiu minha atenção. Ao contrário da viagem que outras mulheres tiveram que fazer para readquirir a feminilidade da qual foram obrigadas a abrir mão para serem levadas a sério, nunca renunciei ao rosa e ao glíter. Se, no passado, a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, declarou que tinha “uma relação serena com o fascismo”, há décadas que estou totalmente em paz com as coisas de meninas, embora muitas vezes me interessem menos do que faço parecer. Brinquei com barbies – nem sempre as originais da Mattel (Mattel Inc. é uma companhia estadunidense de brinquedos), havia cópias com preço bem mais acessível – que me fizeram muito feliz na minha infância, pois era a única boneca que representava uma mulher adulta com uma vida livre e independente. Mas quando cresci e tive meu próprio destino nas mãos, aos poucos e sem drama perdi a necessidade de projetar meu desejo de autonomia em um brinquedo, sem nunca passar pela fase “odeio cor-de-rosa”, familiar a tantas mulheres.

Então, como eu disse, eu não estava muito interessada no filme de Greta Gerwig, mas ouvi dizer que muitos homens estavam se sentindo insuportavelmente magoados depois de assisti-lo. Reclamações, críticas negativas, homens indignados saindo da sala no meio da exibição. Dizem que em países como a China, as jovens incentivam suas amigas a levarem o namorado ao cinema para observarem sua reação e avaliarem se vale a pena continuar nessa relação. Isso chamou minha atenção imediatamente. Erro meu, vou avisando. Sempre esqueço como é terrivelmente fácil ofender um homem cis hétero comum. De fato, se esta crítica do filme não receber nenhuma reclamação é porque estou mesmo muito mal.

Então corri para o cinema e fui vê-lo logo na semana seguinte ao seu lançamento. Um grande recorde para mim, pois sempre descubro todos os maiores sucessos comerciais pelo menos uma ou duas décadas após seu lançamento. Tinha grande curiosidade de ver pessoalmente as reações ao fenômeno Barbie, mais do que o filme em si.

Devo dizer que aqui no Norte essa história das mulheres estarem indo ao cinema com o look totalmente cor-de-rosa não está acontecendo. Em Pamplona, somos pessoas muito sóbrias, só fazemos cosplay durante a festa de Sanfermines e quando o Osasuna vence. O público presente era exatamente o que eu esperava: muitas adolescentes, mães com suas filhas pequenas, algumas famílias completas e um simpático grupo de meninos de cerca de quinze anos que vieram ao cinema de terno. Eles não tiveram coragem de usar gravata, fazia 31 graus. A sala estava cheia, mas só vi uma menina de cerca de doze anos vestida de rosa. Outra adolescente exibia uma manicure com glíter. Uma das mães vestia uma camiseta fúcsia que combinava com a da filha. E foi isso.

Não sei como falar do filme sem incorrer em spoilers, embora isso não tenha importância porque acho que todo mundo já assistiu. No geral, achei o filme divertido, um pouco lento e explicado demais em alguns pontos, enquanto que em outros assuntos se exigia uma suspensão da descrença muito superior à habitual, por falta de coerência interna. A estrutura do roteiro é típica de filmes infantis, mas a mensagem é para os adolescentes e as piadas para os adultos. Uma péssima combinação, na minha opinião, embora esteja sendo um tremendo sucesso comercial. Então, é evidente que me falta uma visão comercial. Durante alguns segundos me espantei, pois notei que ninguém na sala parecia captar a breve referência a Proust, o que fez me sentir como um daqueles professores rabugentos do ensino secundário que ficam chorando durante cinquenta anos porque as novas gerações estão mais ignorantes do que nunca, por causa daquelas telinhas diabólicas. Então me lembrei de que estava assistindo a um sucesso comercial de verão, inconsequente, em um cinema cheio de menores e, consequentemente, a única deslocada ali era eu.

Mas vamos ao imbroglio. A mensagem feminista do filme está criando tanta controvérsia como a exigência do voto universal ou outras. As mulheres – e as bonecas – de “Barbie” sofrem essencialmente de dois problemas: não conseguem que todos gostem delas e as suas vidas não são perfeitas. Na verdade, essa é basicamente a moral da história: que as mulheres têm o direito de serem seres humanos com rugas e celulite, e que podemos rir um pouco das bobagens dos homens. Acho que isso não tem problema se você tem 12 anos, mas se já tem 14, começa a ficar insuficiente demais.

Falemos da questão da beleza: falta inclusão e representatividade. O filme se limita a mostrar-nos mulheres com tons de pele diferentes, umas duas mulheres mais velhas, uma barbie punk com o seu próprio arco de história para ganhar aceitação  das outras e uma única barbie gorda. É surpreendente para um filme que, em tese, vinha trazer uma mensagem feminista poderosa. Essa ausência não pode ser desculpada por exigências do roteiro – sim, as barbies são todas iguais e perfeitas, já sabemos – quando vemos que as mulheres no mundo real não são tão lindas, magras e impecáveis quanto as bonecas. Mandam à comunidade LGBTI acenos tão distantes que duvido que possam ser percebidos.

Se no memorável Meninas Malvadas (Mark Waters, 2004), as divinas, comandadas pela temível Regina George, lembravam um exército de barbies, a Regina de 2023 acaba sendo apenas uma adolescente de 15 anos, que se veste de negro, faz esforço para evitar o uso de linguagem capacitista e acusa a personagem de Margot Robbie de ser uma fascista que incentiva o consumismo sem pensar nas consequências que isso tem para o planeta. Não deixa de ser curioso que a única mensagem mais ou menos combativa seja lançada em tom satírico por uma menina perturbada que, juntamente com as amigas, lembra uma boneca Bratz – dizem que a referência é totalmente deliberada – e que acaba abraçando o rosa e os modos gentis quando descobre que o patriarcado está colocando a Barbilândia em perigo.

De resto, além do fato de os homens serem inúteis, emocionalmente incompetentes, especialistas em mansplaining (ah, sim, aquela referência ao filme O poderoso chefão me fez soltar uma gargalhada) e controladores que roubam poder político, dinheiro, casas e frutos do trabalho das mulheres, a mensagem feminista é completamente domesticada. A harmonia e o amor prevalecem sobre a luta, a justiça, a reparação e o reconhecimento. Não há um único sinal de fúria entre as mulheres: isto é a Mattel, senhora, e não a assembleia autogerida do bairro. Eles têm seu próprio arco de redenção e no final tudo é perdoado. Tanto as bonecas quanto as mulheres ignoram todas as merdas que os homens jogam nelas porque, coitados, também estão confusos com a masculinidade que estão tendo que viver e não sabem como desempenhá-la de maneira adequada e sem prejudicar ninguém.

Não vou renegar algo que está fazendo felizes muitas mulheres e meninas em todo o mundo. O filme é bom e divertido se você não espera nada dele. Mas saí de lá com a sensação de ter engolido um produto criado por meninas e para meninas que, no entanto, nunca consegue se emancipar do olhar masculino. Representa um facelift para a Mattel, uma leve demolição muito bem controlada do patriarcado, uma mudança de tudo para que nada mude. O filme falha na tentativa de rir de si mesmo, porque no final se torna exatamente aquilo que critica: o feminismo de Barbie não é feminismo e empoderar-se não é a mesma coisa que ter poder de verdade. Por mais comovente que seja a cena em que a protagonista conversa com a velha nonagenária no ponto de ônibus – não, a senhora não é Barbara Handler, mas Ann Roth, uma renomada figurinista que ganhou um Oscar – a sororidade açucarada que Barbie propõe não é uma solução real para os nossos problemas. Talvez pudesse servir como um ponto de apoio a partir do qual começar a educar as gerações mais jovens. Quando saí do cinema, já tinha me esquecido completamente do filme. (Original no Ctxt  em 31/07/2023)

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Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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