Munique, 1955. A esperança e euforia marcadas pela rápida reconstrução da Alemanha no período pós-guerra dão lugar a uma sociedade perdida entre os escombros e ruínas de um passado ainda vivo e assombroso. É em meio a esse ambiente opressivo, de decadência moral e ética, que vivem os personagens de “O desespero de Veronika Voss” (1981), penúltimo filme de Rainer Werner Fassbinder, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1982.
A obra, junto a “O Casamento de Maria Braum” (1978) e “Lola” (1981), completa a trilogia de Fassbinder sobre a Alemanha dos anos 1950, na qual o diretor analisa as cicatrizes mentais marcadas pelos horrores do nazismo e por um terrível período de reajustes. Trata-se de um estudo profundo sobre relações humanas, sobre uma nação esfacelada e traumatizada, sobre a hipocrisia, o egoísmo e a perversidade de uma elite dominante que busca se locupletar às custas da ruína alheia.
Veronika Voss, interpretada de forma pungente por Rosel Zech, é uma atriz de cinema decadente viciada em morfina. Fragilizada, perdida, sem chão, ela frequenta uma clínica psiquiátrica onde a neurologista Marianne Katz (Annemarie Düringer) lhe aplica doses regulares da substância. Em troca, a ex-estrela da UFA, que brilhava nos anos 1930 nos cinemas da República de Weimar, entrega tudo o que lhe resta: sua casa, seu espólio, sua vida. Torna-se mais uma presa fácil para a dra. Marianne e seu seleto grupo de amigos, do qual faz parte o responsável pelo Departamento de Saúde Pública de Munique.
A luz e a sombra
Mas Veronika precisa crer que ainda brilha, precisa viver seu derradeiro papel. Numa noite chuvosa, ela conhece o jornalista esportivo Robert Krohn (Hilmar Thate). Os dois pegam juntos um bonde, e Veronika pede a ele que não deixe que a reconheçam, que impeça as pessoas de chegarem perto dela. Porém ninguém a vê, nem sequer sabem de sua existência. No segundo encontro, Veronika diz a Robert que “luz e sombra são os segredos do cinema”. E quando ele diz que ela é linda, a ex-estrela acrescenta: “uma mulher com ambos os lados: a luz e a escuridão”.
O jornalista esportivo tem uma companheira, mas Veronika o atrai fortemente. Na redação, ao contar à sua colega que conheceu a ex-estrela de cinema, ela comenta: “As pessoas me interessam enquanto estão decaindo. Depois que elas já decaíram, não me interessam mais”. Para ela, Veronika Voss é uma perdedora, alguém que deve ser esquecido. Mas Robert se nega a esquecê-la, quer decifrá-la, entender sua dor. Se antes ainda tinha dúvidas, aos poucos ele percebe que seu interesse pela ex-atriz é mais profundo: ele a ama.
Para tentar salvá-la, Robert entra no mundo de Veronika. “Não vou deixar que a destruam”, diz ao ex-marido da atriz (Armin Mueller-Stahl) em um encontro fortuito. Pouco antes, ao ouvir Robert confessar o amor por sua ex-mulher, ele alerta: “Ela vai te destruir”. Mas Robert não teme Veronika e sim um mundo cuja maldade não está mais sob o jugo de um estado opressor ou nos campos de extermínio, mas nas mãos de uma elite médica que mata em silêncio.
A escuridão do branco
“O Desespero de Veronika Voss” é talvez o mais sombrio e amargo melodrama de Fassbinder sobre o lado obscuro do ser humano. O filme em preto e branco e a fotografia expressionista de Xavier Schwarzenberger ressaltam ainda mais a atmosfera opressiva e o desespero de Veronika. Mas não são os tons escuros – que se destacam no figurino dos vários personagens em contraste com a claridade da clínica – e sim o uso intensivo do branco que desperta mais temor. Seja no consultório, seja no cômodo em que a ex-atriz é mantida, o branco, associado à morfina, domina todo o ambiente. Já a luz estourada se sobressai e transforma Veronika, no passado uma mulher iluminada, em uma imagem fantasmagórica, que só tem a morte para oferecer.
Assista o trailer : “O Desespero de Veronika Voss”
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Ilustração: Mihai Cauli
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