Pero Vaz de Caminha estava certo ao afirmar que nesta terra em se plantando tudo dá?
As experiências históricas das economias bem-sucedidas no processo de alcançar e igualar as economias desenvolvidas do ocidente teve como primeiro ator o Japão, depois a Coreia do Sul e atualmente a China se apresenta como o próximo país a ter êxito. É possível dizer que Japão e Coreia do Sul apresentaram nesse processo várias similaridades. Já a China é um caso bastante distinto, por suas instituições políticas e a posição que ocupa na geopolítica mundial. Esses três países, porém, mesmo com as diferenças e similitudes já afirmadas, em algum ponto desse processo definiram e implementaram uma estratégia viável de desenvolvimento baseada na inovação.
Esse ponto foi o que faltou ao Brasil – a experiência mais bem-sucedida de industrialização da América Latina –, mesmo com todos os problemas de desigualdade social e de agressão ao meio ambiente. A partir de meados dos anos oitenta, é possível caracterizar que a industrialização brasileira entrou em um processo regressivo. Essa desindustrialização já foi bastante analisada e debatida em vários livros, artigos e seminários acadêmicos e políticos sem que se pudesse dizer que houve algum consenso sobre a futura estratégia industrial.
O que se quer deixar claro desde o início é a ideia fundamental de que os mecanismos de crescimento diferem substancialmente, dependendo do estágio de desenvolvimento. A difícil transição do estágio de renda média para o estágio de renda alta só é possível se uma economia faz desvios e dá saltos. Ou seja, não é linear nem tem etapas e estágios que se seguem do mais baixo ao mais elevado em termos de produtividade, tecnologia e inovação.
Fazer um desvio pode ser mais rápido do que seguir um caminho direto. A economia brasileira precisa explorar um novo caminho na construção de suas capacidades inovadoras, em vez de replicar práticas empregadas pelas economias avançadas ou mesmo tentar repetir o que foi feito no passado. Precisa realizar o estágio final de desenvolvimento no qual supere os países centrais, tentando, assim, ser líder em alguns setores sob um novo paradigma técnico-econômico.
Existem três questões críticas que inibem o processo de alcançar igualar e superar os países líderes: baixa capacidade tecnológica das firmas nacionais, pequeno tamanho das empresas quando comparadas com as líderes internacionais e a forte proteção à propriedade intelectual. Não vão ser analisadas as questões críticas da baixa capacidade tecnológica das empresas nacionais e a forte proteção à propriedade intelectual. O foco da análise vai ser o tamanho das empresas e quais os setores onde está assentado o grande capital nacional. Ou seja, a economia brasileira tem dificuldade de gerar grandes conglomerados para enfrentar a competição no mercado internacional e nas cadeias globais de valor.
O processo de competição no mercado internacional não é linear. Uma economia inicialmente deve aprender a partir da participação em cadeias globais de valor, mas, em certo ponto, deve reduzir sua dependência em relação a estas cadeias por meio da construção de cadeias domésticas, para então novamente aumentar sua participação de forma a entrar paulatinamente em segmentos de mercado mais sofisticados. Promover o aumento do valor agregado nacional é definido como uma estratégia central para evitar a permanência em segmentos de baixo valor agregado, uma condição típica de economias presas à armadilha de renda média.
As grandes empresas são necessárias para uma transição de renda média para renda alta, uma vez que tais empresas tendem a desfrutar ganhos de escala e promover externalidades, estando, portanto, em melhor posição para a realização de atividades de maior valor agregado como P&D e marketing.
E onde está localizado, na economia brasileira, o grande capital nacional em conglomeração? O Brasil é o agro, e o agro é o Brasil. Os grandes conglomerados brasileiros atuais em sua maioria tiveram sua origem na agroindústria e na indústria extrativa. Caminha estava certo ao afirmar que nesta terra em se plantando tudo dá. Notem que nesses conglomerados também existem empresas em setores com alta intensidade de capital (CApEX) e razoável gasto em P&D sobre vendas uma proxy para os gastos em inovação.
A J&F é a holding da família Batista. É dona do JBS, segunda maior empresa do Brasil, por faturamento (segundo o ranking “Valor 1000” de 2022), a maior empresa de carnes do mundo. O BNDES tem 20,81% da JBS. Quer comprar praticamente a metade da petroquímica Braskem. É uma operação de grande volume de capital em qualquer economia do mundo. É um exemplo do processo de acumulação do grande capital no Brasil, da sua origem setorial e dos seus proprietários – uma grande empresa agro se conglomerando para outros setores mais intensivos em capital e tecnologia.
A J&F também é proprietária da Eldorado (de celulose), da Flora (do ramo de farmacêuticos e cosmética) e da Âmbar (energia), entre as 600 maiores do país. Tem também o Banco Original, o aplicativo de pagamentos PicPay e o Canal Rural. A Braskem é a maior petroquímica do país, 8ª maior empresa. A Petrobras tem 47% do capital votante da companhia; a Novonor (Odebrecht) tem outros 50%. A parte da Novonor é, na prática, dos bancos credores (Bradesco, Itaú, Santander, Banco do Brasil, BNDES).
É importante lembrar que, depois dos ciclos da indústria automobilística encerrado na abertura dos anos noventa nos governos Collor e FHC e da engenharia pesada e suas grandes empresas internacionalizadas encerrado com a lava-jato, as maiores empresas atuais foram criadas a partir da cana de açúcar e da carne e estão em vias de despontar aquelas com origem na soja, milho e trigo.
A terceira maior empresa do país é a Vale, criada pelo Estado e privatizada. A quarta é a Raízen, (Cosan e Shell), dominante no açúcar e no etanol, na distribuição de combustíveis, lubrificantes, com expansão forte em outras energias renováveis (como solar e biogás).
Ao se falar em transição para economia verde (green new deal), essas empresas já estão no desenvolvimento das novas tecnologias em energia e serão centrais para essa mudança.
A Cosan (família Ometto) é a 6ª maior empresa. Origem na cana de açúcar e álcool. Também controla a Compass, dona da Comgás, da Sulgás, da ex-Gaspetro (que era da Petrobras) e tem participação em mais de uma dúzia de distribuidoras de gás. Tem também a Rumo, maior administradora de ferrovias, com terminais portuários e de outras logísticas.
A lista das dez maiores empresas que operam no Brasil inclui cinco no setor de energia (petróleo, gás e bioenergia): Petrobras, Raízen, Vibra (ex-BR Distribuidora), Cosan Ultrapar; três são da agroindústria: JBS, Cargill (multinacional americana de processamento, fabricação e comercialização de produtos do agro) e Marfrig (carnes). Completam a lista a Vale e a Braskem. A maior empresa industrial brasileira, a Gerdau é a 11ª. As montadoras aparecem no 19º lugar, a Fiat Chrysler e a Volkswagen, em 41º.
A especialização setorial, uma escolha crucial para a política de inovação industrial em economias de renda média deveria centrar em setores caracterizados por tecnologias de ciclo curto, cuja perspectiva de crescimento é elevada e as barreiras à entrada são baixas, em vez de tecnologias de ciclo longo. A frequência com a qual inovações são introduzidas nestes setores torna o conhecimento obsoleto mais rapidamente e acelera o aprendizado tecnológico.
Fomentar o setor farmacêutico, caracterizado por uma tecnologia de ciclo longo torna difícil ultrapassar a hegemonia das economias avançadas. Nesse ponto, a experiência da Coreia do Sul, que optou por semicondutores e tecnologias de informação e comunicação pode ser um bom indicador da trajetória a ser seguida.
Os grupos empresariais são um mecanismo organizacional importante para o catching up, preenchendo algumas lacunas institucionais necessárias para o fomento a grandes empresas. A experiência de economias bem-sucedidas do leste asiático mostra que as grandes empresas facilitam o processo de catching up, pois possibilitam o compartilhamento de recursos escassos, promovem maior desenvolvimento de conhecimento e subsidiam a expansão a novos mercados por meio do acesso a capital.
As grandes empresas devem ser complementadas por um número considerável de pequenas e médias empresas de relevância internacional, como meio para difundir o crescimento econômico e criar empregos.
Para que se possa ter êxito na capacitação nas tecnologias de ciclo curto é necessário criar demanda para elas que deve vir de um grande programa de investimento em infraestrutura para que o potencial das Tecnologias de Propósito Geral possa ser aproveitado. Estas tecnologias reforçam as tendências de customização das soluções tecnológicas e relativização das escalas produtivas na produção de alguns manufaturados e no provimento de serviços. Isto significa que, embora continue havendo grandes pacotes tecnológicos fornecidos por grandes empresas, as tecnologias cluster 4.0 também irão se caracterizar por usos e aplicações específicas, no desenvolvimento de soluções tecnológicas para problemas de diversas naturezas. Muitas das aplicações nos processos produtivos serão desenhadas a partir das demandas de cada empresa, criando um espaço também para desenvolvedores locais de soluções tecnológicas mais circunscritas.
As Tecnoglogias de Propósito Geral são transversais aos setores. Têm caráter altamente genérico e de uso disseminado. Nesse sentido, algo em torno da metade da demanda estimada pelas tecnologias da Indústria 4.0 será proveniente do setor público, proporcionada pela mudança tecnológica na prestação e organização dos serviços públicos. As tecnologias habilitadoras promoverão mudanças significativas na mobilidade urbana, tratamento de resíduos, medicina preventiva, controle de tráfego, entre outras áreas com imenso potencial de criar demanda a partir do setor público para tecnologias do novo paradigma. É a abertura de uma janela de oportunidade para os programas orientados à missão (POM).
Esse ponto é de fundamental importância, pois indica uma das vias possíveis para o desenvolvimento de políticas industriais, científicas e tecnológicas tendo como referência a solução de questões estruturantes dos problemas sociais, ambientais e urbanos brasileiros.
No Brasil, como apresentado, as empresas dominantes ou que se tornam cada vez dominantes estão no setor de energia; ou estão e se fizeram no setor agroindustrial. Aproveitaram as vantagens absolutas e comparativas do Brasil. Se vier de fato uma política de baixo carbono elas estarão no núcleo da formação do grande capital conglomerado brasileiro.
A experiência histórica do desenvolvimento do capitalismo mostra um determinado padrão, uma relação entre as áreas mais afetadas pela expansão tecnológica, os setores de comunicações e de transportes (logística). A cada ciclo econômico e tecnológico, o mundo “encolheu” um pouco mais e isso acarretou profundas modificações nos padrões de comportamento e de consumo (inovações sociais). Houve uma ativa participação do Estado para que os investidores, que insistiram em assumir o risco e os retornos relacionados à construção e à exploração das novas mudanças tecnológicas pudessem formar expectativas positivas sobre o retorno desses investimentos. Cada um desses períodos caracterizou-se por uma expansão significativa do mercado de ações e de bens imobiliários nos países tidos como principais centros financeiros da Europa e da América do Norte.
O exemplo clássico dessa relação entre finanças, tecnologia e inovação foi a integração entre ferrovia e telégrafo, transporte e telecomunicações, em meados do século XIX, que estabeleceu uma enorme base de demanda para o aproveitamento futuro do enorme aumento de produção que viria com a segunda revolução industrial e com a formação dos grandes conglomerados que dominam o mundo até hoje.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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