Entrevistamos* o psicanalista Jorge Broide, especialista em situações sociais críticas, que falou sobre a vida das pessoas que vivem nas ruas das grandes cidades em tempos de pandemia. Jorge é professor da PUC/SP, doutor em Psicologia Social pela PUC, sócio da SUR Clínica e Intervenção Social e consultor de Politicas Públicas e Desenvolvimento Social.
1- TP: A pandemia é uma situação extrema para vida, apenas alguns poucos líderes políticos do mundo insistem em negar sua gravidade. Como ela afeta aquele que já se encontrava numa situação de risco extremo, aquele que vive nas calçadas e viadutos de nossas cidades?
Jorge Broide: Afeta de maneira brutal, pois reduz ainda mais os seus vínculos com a sociedade. Antes da pandemia e do isolamento social eles tinham alguma interação com as pessoas que circulavam nas ruas, que frequentavam as lojas, os bares e restaurantes. Não era muita, mas ocorria. Com a propagação do vírus e a redução da circulação de pessoas nas ruas, houve uma interrupção abrupta do suprimento de alimento, das doações em dinheiro e bens. A sobrevivência ficou mais difícil, além disso, suas relações sofrem um novo estreitamento, pois passam a existir somente entre os próprios moradores das ruas.
2- TP: Em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, lhe foi perguntado e voltamos aqui à questão: o que significa dizer para ficar em casa a uma pessoa que não tem casa?
Jorge Broide: A recomendação é importante para evitarmos a propagação do vírus. Mas para a pessoa em situação de rua apenas expõe de uma forma um tanto cruel o quão próximo ela está diante da morte. Quem tem uma casa irá sofrer com o isolamento, porém continua de certa forma a manter suas relações sociais com amigos, familiares, colegas de trabalho. Para os que não têm, a recomendação perde significado, pois mesmo os abrigos tornaram-se foco potencial de contaminação. É duro dizer, mas essas pessoas em situação de risco passam a ser vistas como risco, como portadoras do vírus.
3- TP: Seus trabalhos mostram anos de dedicação ao problema das pessoas em situação de risco social extremo, especificamente aqueles homens e mulheres que vivem nas ruas. Quem são eles?
Jorge Broide: Essas pessoas vivem a exclusão social de uma forma radical e expõem o que nós temos o desprazer de ver – a pobreza social, a miséria, a penúria, a fragilidade. Como um deles disse: “pra baixo da rua não tem nada”. São pessoas que tiveram seus laços sociais rompidos, na família, na educação, na comunidade e no trabalho. A ida para as ruas geralmente ocorre a partir de um fato desencadeante que consolida rupturas. Quando vai para as ruas, o sujeito necessita recompor todos esses laços num mesmo local, na calçada onde passa a ter a vida comunitária, a vida afetiva, a sobrevivência econômica, o aprender sobre o mundo. Nesse processo, cria-se uma dependência da rua, pois é onde se condensam seus laços psíquicos e econômicos. Tirá-lo dali, sem um trabalho para construção de outro projeto de vida é um empurrão para uma nova ruptura trágica.
4- TP: Quer dizer, existem fatores socioeconômicos que o levam para rua, mas há que se pensar mais além?
Jorge Broide: Sim. A ruptura ou inexistência das redes sociais que sustentam o sujeito economicamente e psiquicamente geram inúmeras fraturas psíquicas. Pessoas pertencentes à classe média também passam por rupturas, mas geralmente elas têm redes de sustentação nos amigos, nos acessos às agências bancárias e tantas outras formas de convivência social. A maior parte das pessoas que vêm da miséria econômica não possuem os apoios necessários e as rupturas, muitas vezes, significam a queda do sujeito no abismo da solidão e do desamparo. Esse grupo não é homogêneo, é composto por uma diversidade de situações pessoais ou por uma combinação delas. Podem ser pessoas com transtornos mentais graves, migrantes e imigrantes, homens e mulheres LGBT e por isto expulsos de suas casas, ou ainda, pertencentes a famílias da periferia das grandes cidades que ficaram miseráveis e, para se manterem, vão para o centro urbano em busca de alimentos, cobertores. Há casos de pessoas que viviam em terras ou prédios ocupados e foram expulsas, e, não podem ser esquecidos e existe um grupo muito grande, entre 40% e 50% de egressos do sistema penitenciário, que saem das prisões com a roupa do corpo e sem documentos.
5- TP: Como alguém consegue viver nessas condições?
Jorge Broide: A vida na rua é de muita violência, apesar disso, são construídos laços solidários entre a população de rua com os comerciantes, com as ONGs, com os assistentes sociais nos abrigos, além dos profissionais que atuam nos consultórios de rua. São todos bastante precários, mas atenuam um pouco os problemas. Outro fator importante para a sobrevivência nas ruas é a bebida e outras drogas, sem as quais ficaria quase impossível suportar a situação de dor, solidão e desamparo. Ao longo de nossos anos de trabalho com essas populações, desenvolvemos uma metodologia baseada no que chamamos de ancoragens, que nos levam à busca dos fios invisíveis que amarram o sujeito à vida. Apesar de nossa experiência, vários casos nos levam a essa pergunta feita por vocês: como a pessoa que estamos atendendo ainda está viva? Através da escuta psicanalítica, em muitos casos, foi possível encontrar esses fios invisíveis que os mantêm vivos, fios que nem eles, nem nós sabíamos identificar antes.
6- TP: O objetivo de encontrar os fios que os prendem à vida é bem ousado.
Jorge Broide: Ao longo do processo de atendimento é necessário ir atrás deles, tanto na história da pessoa, quanto no território. Muitas vezes esses laços não são familiares, eventualmente são apenas com um ou outro membro da família, outras vezes são fios atados a algum comerciante da rua, a um amigo, amiga ou namorado, ou como é bastante comum, ao cachorro, que como vimos em Vidas Secas de Graciliano Ramos, é quem sustenta afetivamente o sujeito. É importante ressaltar que há um erro nos sistemas de assistência social reduzidos à ideia de solução pelo retorno à família, pois muitas vezes conduzem a uma repetição dos fatos traumáticos. Nossa proposta é estruturar o trabalho de atendimento por meio das ancoragens que amarram o sujeito à vida e ao território, possibilitando a construção de um outro projeto de vida. Essa é a proposta.
7- TP: Existe alguma iniciativa do poder público com resultados, mesmo que pequenos diante do tamanho do problema?
Jorge Broide: Nos países desenvolvidos tem sido utilizado o chamado “housing first”. Eles colocam a pessoa excluída em um apartamento e só depois começam os cuidados, quando ela já está instalada. Esses programas têm funcionado bem, mas são caros. No Brasil, tendo em conta a escassez de recursos e o número elevado de pessoas em situação de rua, talvez uma alternativa sejam as repúblicas, onde as pessoas possam morar e serem acompanhadas por uma equipe de trabalho capacitada. Em conjunto com a sociedade civil, estamos planejando algumas iniciativas deste tipo para criar espaços onde as pessoas possam receber atenção de profissionais capacitados e assim, contribuir com a construção de “novos” projetos de vida articulados com o desejo e condições de saúde psíquica e mental.
8- TP: Nos seus trabalhos você fala muito em “escuta territorial”. Explique para nós essa ideia.
Jorge Broide: Desde que comecei a trabalhar nas ruas há 44 anos, entendi que existem relações fundamentais, complexas e pouco conhecidas nas ruas da cidade. Acessamos essas relações, entre outras formas, pelo método psicanalítico de escuta do sujeito. Como vocês já podem perceber, a psicanálise que faço não está restrita ao consultório particular, onde trabalho desde que me formei. A psicanálise não pode se validar por quatro paredes e um divã. Ela tem que estar onde a vida está. Por isso, tenho atendido nas ruas, em diferentes instituições e grupos sociais, sempre construindo dispositivos psicanalíticos que possam dar conta das urgências sociais que se apresentam. Há muitos anos trabalho com a Dra. Emilia Broide, e desenvolvemos esse método de escuta em diferentes situações: nas políticas públicas – realizando pesquisa nas ruas para a construção do plano municipal voltado à população em situação de rua; na cidade de Paraty com a avaliação de impacto do trabalho realizado pela FLIP, por meio da FLIPINHA, incentivadora da literatura nas escolas públicas; no trabalho para assimilar as forças locais do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, entre muitos outros. Temos trabalhado de forma interdisciplinar com urbanistas, antropólogos e geógrafos urbanos, entre outros. A escuta psicanalítica, como dizemos, nos permite escutar a pulsação da cidade, através dos laços inconscientes que o sujeito tem com o território urbano, onde grande parte de sua história e sua vida atual está amarrada de forma consciente e inconsciente.
9- TP: Será que a pandemia pode, ao final, trazer mais solidariedade? Quem sabe uma forma diferente de ver o problema dos que vivem nas ruas?
Jorge Broide: Depende. Se seguirmos na direção em que estamos, certamente não. Isso somente será possível em um momento político de reconstrução criativa de nosso país.
*Entrevista por Eduardo Scaletsky e Ana Santa Cruz.