Georges Didi-Huberman conta a história dos arquivos escondidos no Gueto de Varsóvia.

82 anos do Levante do Gueto

Recebi o livro recoberto por uma película transparente, um pouco mais fina do que o padrão das livrarias, e logo me chamou a atenção uma densidade na parte de baixo, um pouco incomum. Pensei que talvez algumas páginas tivessem ficado dobradas no momento da impressão, um defeito.

Tiro a película, abro o livro e vem então a surpresa: na parte inferior das páginas, um pequeno amontoado de pedrinhas correndo na horizontal. Uma fileira de pedras. De verdade. Toco uma pedrinha para me certificar da materialidade, pego várias, vejo o livro com o sulco retangular, uns dez centímetros na extensão, e com a profundidade de todas as páginas. Como aqueles livros que são preparados para desvio de função, só casca, onde dentro tem um objeto encaixado ao invés das páginas, um espaço recortado especialmente para acomodar a coisa que, por suposto, deve permanecer escondida.

Esparsas escondidas mensagens enviadas para outro tempo. Esparsas, viagem aos papéis que foram guardados, escritos em momento de desespero, de medo, de um não saber sobre qualquer possibilidade de futuro. Este é o livro de Georges Didi-Huberman que conta a história dos arquivos escondidos no Gueto de Varsóvia. Gueto onde ocorreu o levante, a luta daqueles que se recusaram à rendição aos nazistas, que pegaram em armas até o final, até seu extermínio.

Foto: Arquivo Pessoal

Aqui encontramos outro caminho de subversão, não o das armas, mas o das palavras. Vem do trabalho incansável de Emanuel Ringelblum que organizou um movimento constante: o relato da experiência do cotidiano no gueto, reunindo esses papéis esparsos como e onde podiam ser escritos. Ringelblum não sobreviveu à guerra, foi preso e fuzilado com sua mulher e filho em março de 1944. Reuniu os escritos endereçados ao futuro, algo como uma luta dele/dos outros, através das letras, para que sua história sobrevivesse, para que fosse encontrada e lida, para que nos alcançasse.

Ringelblum tomou três decisões, diz Didi-Huberman. A primeira, a de permanecer. Não ir embora, aguentar com os outros, agir, atravessar juntos cada batida da SS, neste tempo de encerro. A segunda, de ajudar, implicado em sua comunidade que enfrentava a investida do extermínio como ameaça constante. A terceira decisão foi aquela de escrever. Narrar, ouvir, contar, recolher os pequenos escritos em várias línguas, documentos de todo tipo, cartas, ensaios, bilhetes rabiscados às pressas, desenhos feitos pelas crianças, poemas, ficções, crônicas, tudo o que pode.

O sumário de Huberman é já uma leitura que por si faz escrita: papéis chorados; papéis amarelados; papéis-desejos; papéis murados; papéis fugidos, papéis apodrecidos, papéis afogados; papéis de adeus; de alarmes, de bala, sagrados, papéis-conflitos… O último, papéis-sementes. Arquivo de vozes aterradas, ele diz, papeizinhos de coisas medíocres alternadas com coisas avassaladoras.

“O trabalho de Papai, escapar do traslado”; “Meu caro irmão, me escreva o que ainda resta em nosso apartamento da rua Parysowska, se tudo ainda está lá, porque não trouxemos nada conosco e, por favor, envie-me roupas quentes, principalmente cuecas, porque estou usando todos os dias a mesma que eu tinha então.” “Desejo que você tenha o que comer […], que você possa ficar bem” (janeiro de 1942); “Por favor, responda depressa, isso seria muito reconfortante para nós, porque nós não recebemos uma única palavra de ninguém” (fevereiro/1942). “Não estou pedindo ajuda, mas apenas que você me diga como você vai” (agosto de 1942); “Você nem pode imaginar a que ponto uma única palavra vinda de você conta para nós.” (março de 1942); “[…] Escreva-me também se o resto da nossa família está vivo.” (fevereiro de 1942).

Esparsas as marcas da urgência, de saber dos seus, de vida ou morte. “Desejo de sobreviver, escapar, desobedecer a morte”.

Os escritos foram encontrados enterrados no subsolo de uma das ruas do gueto, em 1946, em grandes caixas retangulares de lata de leite. Junto com o espanto e a descoberta, também uma preocupação enorme, pois se ouvia um barulho de água dentro das caixas. Não houve tempo de lacrar as caixas, de soldá-las antes de enterrar, e os papéis que foram tirados estavam inchados, grudados, apodrecidos, mofados. Mais de 25.000 folhas foram salvas passando por um trabalho impressionante de restauro.

As pedras? Em uma das ruínas do muro do gueto, Didi-Huberman encontra um espaço cavado, uma linha horizontal onde foram se colocando, então, as pedrinhas nesta fenda, como objetos de lamento, como lágrimas cristalizadas, diz, à espera de uma palavra. A materialidade que se transporta fragmentariamente para o corpo do livro. A condição do fragmento em relação ao que encontramos em todo o texto sublinhando o termo “esparsas”, que está também em cada abertura de capítulo. “Esparsos: resto de memória, materiais ou psíquicos, que uma mesma história pode nos deixar para compartilhar.” “Esparsas: oportunidades de retorno, aqui e ali, ainda e sempre, no calor de um tal desejo: quando alguns se insurgem, fazendo vacilar uma situação de terror imposta a todos.” “Esparsos: porões, esconderijos onde se abrigam, mesmo que provisoriamente, seres ou restos ameaçados pelo inimigo que os procura.” Esparsas formas de sustentar a vida, por um tempo, em uma engrenagem que vai se fechando.

E o voto em um dos escritos: que o que escreveram no gueto seja como uma pedra lançada na roda, na engrenagem de uma história que precisa ser interrompida.

Ainda uma acepção de “esparsas” nos concerne de forma especial. Didi-Huberman destaca que a imaginação é uma faculdade ética e política, mesmo antes e para além de ser experienciada pela via da literatura e da arte; trabalha na direção de tentar apreender o impossível. A gente não possui aquilo que imagina. É uma relação à falta. Imaginamos esparsamente, imaginamos com falhas, com lacunas, com dificuldade. Mas é também através do desafio de imaginar, com toda sua precariedade, que se pode fazer uma aproximação histórica e política, aponta; uma aproximação às condições de contexto e discursos que incidem na subjetividade de um tempo, podemos acrescentar. Assim, fazer o exercício do imaginar não seria aqui algo de devaneio ou fantasia no sentido corrente, mas uma maneira de fazer a aproximação com aquilo que não tem como dizer (porque nem tem as palavras, excede esse registro). Algo que convoca o pensar presente, para nosso tempo. Tenho escutado situações surpreendentes na clínica, como o empuxe para o muro, a formação do gueto, dentro e fora, no nosso contexto particular e ao mesmo tempo na extensividade do laço social.

Esparsas vem como uma leitura que nos incita a levar adiante as falas, algo que chama à distância para seguir questionando, discutindo, lembrando, adicionando, colocando as perguntas, “continuar a ler o mundo” para nele poder também, encontrar posição. (Publicado por Sul 21)

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Clique aqui para ler artigos do autor.