Nos anos 1960 e 1970 do século passado, a Teoria da Dependência gerou um debate fértil que diz respeito a toda a periferia capitalista. Tendo origem na América Latina, essa linha de elaboração teve o Brasil como um dos países em que mais repercutiu e ganhou vida. A partir dessa perspectiva inovadora, o debate sobre a identidade, inserção no mundo, assim como as razões do subdesenvolvimento e sua superação foram ganhando o mundo. Em 2022, a propósito dos 200 anos da independência brasileira, foi realizado um colóquio em Paris com a participação de pesquisadores de vários países onde estava em pauta a validade e derivações da Teoria da Dependência. Em maio de 2025, o Instituto de Estudos Brasileiros/USP publicou um dossiê com vários artigos apresentados no Colóquio intitulado “Independência ou morte!” que trazem novas luzes e perspectivas sobre o debate dependentista. As gerações que não viveram as décadas de 1960 e 1970 têm muito pouca familiaridade com este debate. O artigo traz para hoje esta discussão ainda inconclusa. (Cézar Agusto M. Guedes, do Conselho Editorial do Terapia Política) 

Resenha

Desenvolvida nos anos 1960 a partir de reflexões sobre o contexto latino-americano, a teoria da dependência defende que os países da América Latina que se tornaram independentes no início do século 19 não foram capazes de romper com as estruturas de poder socioeconômicas constituídas durante o período colonial. Por isso, o subdesenvolvimento dessas nações é resultado não de um atraso interno, mas de sua posição subordinada no sistema capitalista global, que ainda se mantém.

Essa análise faz parte de um dos artigos presentes na nova edição da Revista do IEB (número 90), publicada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que traz um dossiê sobre a teoria da dependência. Intitulado Independência ou Morte!, o dossiê reúne oito artigos sobre diferentes aspectos dessa teoria, escritos por especialistas do Brasil e do exterior. “O ‘papel renovador’ e a força da crítica latino-americana às ‘teorias convencionais do desenvolvimento capitalista’ elaboradas nos países desenvolvidos, como foi sublinhado pelo politólogo brasileiro Francisco Weffort, explicam em boa medida o sucesso das ideias da dependência para além do continente americano”, escrevem os organizadores do dossiê, os professores Paulo Teixeira Iumatti, do IEB, e Flores Giorgini, da Université Sorbonne Nouvelle, de Paris, na França. “Assim, é importante sublinhar que, apesar do declínio do número de trabalhos sobre a teoria da dependência ou das referências explícitas à ‘escola da dependência’ a partir da década de 1980, as vozes dos dependentistas continuaram ecoando até os nossos dias.” A revista está disponível gratuitamente no site do IEB.

Cruzando as fronteiras latino-americanas

Num dos artigos do dossiê, intitulado Desenvolvimento como superação da condição colonial: a influência de longo prazo das formulações isebianas, o professor Rafael Ioris, da Universidade de Denver, nos Estados Unidos, destaca a contribuição das ideias desenvolvidas no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), nas décadas de 1950 e 1960, para a teoria da dependência. Influenciados pelas pesquisas da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) e pelo pensamento existencialista europeu, os intelectuais do Iseb defendiam um projeto de rápida industrialização liderado pelo Estado, articulado a uma ideologia nacionalista firmada nas dimensões culturais e identitárias do Brasil. “O pensamento isebiano inovou ao propor um entendimento multidimensional sobre a realidade da dependência, já que esta era vista como indo além da questão econômica, para englobar dimensões sociais e mesmo culturais”, escreve Ioris.

As repercussões da teoria entre América Latina e África, especialmente durante os anos 1960 e 1970, guiam a temática do artigo The idea of dependence and its places, do professor Antônio Mota Filho, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também presente no dossiê da Revista do IEB. Buscando respaldo teórico no ensaio As ideias fora do lugar (1973), do crítico literário Roberto Schwarz, o autor propõe uma outra visão sobre a ideia de que concepções liberais europeias – como liberdade, igualdade e propriedade – foram transplantadas para o Brasil, onde as elites econômicas emplacaram tentativas de fazê-las prosperar. Em vez disso, Mota Filho argumenta que a teoria da dependência, desenvolvida em uma periferia global, cruzou as fronteiras latino-americanas e influenciou outros contextos periféricos, particularmente o africano. “Como podemos explicar o fato de que, ao chegar à periferia do capitalismo, o liberalismo — que havia desempenhado um papel revolucionário no centro, impulsionando a defesa dos direitos políticos individuais — transformou-se em uma ideologia que justificava a escravidão?”, questiona o autor no texto.

Em Celso Furtado e a teoria da dependência: diálogos e aproximações, a professora Renata Bianconi e o professor Roberto Pereira da Silva, ambos da Universidade Federal de Alfenas, abordam uma questão controversa no universo acadêmico: em que medida o economista Celso Furtado contribuiu com a teoria da dependência? Apesar de Furtado ser amplamente reconhecido como um dos principais pensadores do subdesenvolvimento na América Latina, há pesquisadores que questionam se ele pode ser considerado um autor daquela corrente teórica. No texto, Bianconi e Pereira Silva explicam que, inicialmente, Furtado se associou ao estruturalismo da Cepal e criticou a burguesia nacional pela ausência de um projeto autônomo de desenvolvimento, o que o afastaria das vertentes da teoria da dependência.

No entanto, os autores argumentam que os trabalhos do economista antecipam e, posteriormente, superam os debates dependentistas, uma vez que Furtado reformula suas concepções e propõe que o subdesenvolvimento não é apenas econômico, mas também uma forma de alienação cultural em que os padrões de consumo e valores dos países centrais são adotados pelas elites periféricas. “Para Furtado, a luta para romper os laços de dependência e subordinação só poderia emergir da plena manifestação da criatividade de uma sociedade contra a mimetização de valores culturais e em prol da definição e consecução de seus próprios fins”, destacam os autores.

Já no artigo Crise, deslocamento e reconversão: o Ilpes entre a tradição estruturalista e a crítica sociológica, Darlan Praxedes Barboza, Luiz Carlos Jackson e Fabio Silva de Souza – os três da USP – analisam a trajetória do Instituto Latinoamericano de Planificación Económica y Social (Ilpes) como um espaço crucial de ruptura simbólica com o estruturalismo cepalino. Pela instituição passaram nomes como Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto e José Medina Echavarría, que desafiaram a ortodoxia econômica vigente na década de 1960 e favoreceram a emergência de novas abordagens sociopolíticas da dependência.

Os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso também são analisados no artigo A formação transnacional da teoria da dependência, de Flores Giorgini, da Sorbonne. Giorgini aponta as críticas do intelectual e de outros autores dependentistas à apropriação e redução das teorias produtos de consumo acadêmico, perdendo a complexidade original dos debates latino-americanos. “A trajetória de FHC, considerado pela historiografia posterior como um dos principais autores da dependência, nos permitiu reconstruir parte dos debates que deram vida a essa ‘teoria’ entre Brasil, Chile, México, Senegal, Suíça e Noruega”, escreve Giorgini. “Além disso, o caso de FHC se revelou particularmente interessante para mostrar a distância entre a teoria da dependência que circulava no espaço internacional na segunda metade da década de 1970, e aquela que o autor tinha ajudado a forjar alguns anos antes. Dito de outra forma, os escritos do sociólogo brasileiro permitiram apontar para a decalagem entre a complexidade dos debates e a fragmentação das opiniões que caracterizam as relações entre os dependentistas no espaço latino-americano e a aparente homogeneidade veiculada pelo conceito de teoria da dependência no olhar dos autores estrangeiros que não tomaram parte em sua criação.”

A análise crítica das duas principais vertentes marxistas da teoria da dependência é o tema do artigo As duas vertentes marxistas da teoria da dependência e seus limites: para uma nova síntese da economia política histórico-estrutural. Nele, o professor Pedro Paulo Zahluth Bastos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), busca formular uma nova proposta teórica que supere os limites das perspectivas marxistas econômicas, representada por autores como Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, e política, associada a Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Bastos propõe a construção de uma nova síntese histórico-estrutural da teoria, integrando dimensões econômicas e políticas da dependência.

O último artigo do dossiê é Ontological predation and the conjuring of liberal fixations: ruminations on (inter)dependencies and ‘savage’ (dis)possessions, de Gustavo Azenha, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. É um ensaio denso e reflexivo que propõe uma crítica filosófica e antropológica às noções de dependência, autodeterminação e liberdade, explorando suas raízes e manifestações em diferentes tradições teóricas.

O dossiê é resultado de debates realizados em um colóquio em Paris, em 2022, por ocasião do bicentenário da Independência do Brasil, evento que contou com a participação de pesquisadores de diferentes países, que abordaram a atualidade e os desdobramentos da teoria da dependência. (Publicado por Jornal da USP)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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