Luizinho

Em todos os países do mundo, a atividade física realizada por lazer é a ponta mais visível de uma grande cadeia de atividades sociais e econômicas. Essa cadeia de produção e reprodução contínua das suas bases econômicas e sociais começa com a paixão do ser humano por alguma atividade que o tire da rotina do dia a dia do trabalho e, ao mesmo tempo, lhe traga alguma recompensa pessoal em termos de prazer.

A recompensa pessoal advinda do lazer esportivo pode ser o reconhecimento da comunidade local pela sua destreza em alguma atividade física ou na capacidade de organizar a comunidade para essas atividades. É importante notar que nem todos têm a mesma capacidade física. Portanto, existe também um espaço a ser preenchido por aqueles que não se destacam na prática de atividades físicas – é o espaço da organização dos eventos.

Esta forma de lazer, diferenciada da outra, é tão importante quanto a primeira. Seria possível a pelada de fim de semana sem alguém que recolhesse o dinheiro para comprar os uniformes, a bola e providenciasse o local e o horário da pelada?

O exemplo da pelada serve como indicação de que existe uma outra diferença entre as formas de lazer esportivo: o individual e o coletivo. No lazer individual basta a relação do cidadão com o meio ambiente para a realização do lazer. O surfe, windsurf, o bodyboarding, a natação, a corrida e a caminhada só necessitam desta condição. O próprio ato em si do lazer já o organiza. Somente é necessário que se tenha o equipamento adequado para a sua prática.

No lazer esportivo coletivo, a existência do outro ou dos outros é a condição básica para a sua realização. Ninguém joga futebol, voleibol ou basquetebol sozinho. Da mesma forma que ninguém pratica artes marciais sozinho. É necessária a existência do adversário, individual ou coletivo.

Enquanto que na prática esportiva coletiva o objetivo é a superação do adversário, na individual se trata de superar a natureza.

Não estamos querendo dizer com isso que praticar surfe ou windsurf solitariamente é melhor do que com vários outros praticantes ao seu lado. Apenas, estamos ressaltando o lado social ou individual da natureza da atividade esportiva do lazer, e as distintas implicações que isso tem para a organização dessas atividades.

Se definirmos a atividade física como uma forma de conhecimento do mundo através do relacionamento do corpo com a realidade exterior[1], ela se transforma em um forte vínculo entre o indivíduo e o seu meio social. É um fator de civilidade extremamente importante. Ensina regras de convivência social e permite um claro reconhecimento dos limites individuais e sociais. Ensina a conhecer a si, o outro e os outros, no sentido de que a existência precede a essência, isto é a consciência, não é algo distinto do corpo (Sartre, 1987, p. 5).

O lazer esportivo se enquadra perfeitamente neste conceito de autoconhecimento e conhecimento dos outros. É interessante assinalar aqui a famosa imagem dos surfistas, divulgada em vários meios de comunicação, como pessoas de pouco vocabulário ou com uma forma especial de comunicação pouco acessível aos não iniciados na prática do surfe. Não viria essa forma especial de comunicação da própria natureza da atividade, onde para praticá-la é necessário ficar horas e horas no mar à espera da onda? Onde é mais importante prestar atenção ao mar do que nas pessoas?

Isto não quer dizer que os surfistas sejam alienados ou não conheçam o ambiente no qual estão inseridos. Apenas quer dizer que a sua forma de apreensão da realidade passa pela relação mais forte que eles têm com o mar e o surfe.

Se aprofundarmos um pouco mais esta análise, podemos notar que duas coisas, exteriores ao surfista, são fundamentais para a boa prática do lazer: as condições do mar e a prancha.

A produção do lazer surfista, do bodyboarder ou do windsurfista depende da natureza (o mar e vento) e da produção industrial das pranchas. A primeira condição está fora de controle do homem. A segunda condição é perfeitamente controlável. Como todo produto industrial, vai depender do processo de produção e do design do produto. O primeiro vai garantir a qualidade da prancha e o segundo qual o tipo que tem de ser usado para as diferentes espécies de onda, pequenas, médias e grandes. Estamos diante de uma cadeia produtiva que tem uma linha de montagem e produtos diferenciados, de acordo com o tipo de prática que o surfista deseja realizar. Se avançarmos um pouco mais na cadeia produtiva, veremos que já se podem produzir pranchas personalizadas para o estilo do surfista.

O que estamos tentando mostrar é que existe uma descontinuidade entre as condições de prática do lazer e do esporte. A primeira é uma atividade com alta tolerância ao erro, isto é, onde o entretenimento dos praticantes predomina. A segunda é o esporte com  baixa tolerância ao erro, onde a competição e a excelência da performance predominam e o entretenimento é atributo do espectador[2].

Essas condições de prática da atividade esportiva, seja por lazer, seja profissionalmente[3], constituem o locus privilegiado da ação humana: planejamento, coordenação e gerência. Arrumar o campo de pelada significa definir o local e a hora. Além disso, permite que uma série de serviços secundários ao principal – local, hora, bola, uniforme e escalação dos times – sejam organizados para a completa realização do lazer: o vendedor de refrigerante e cerveja, o pagode, o churrasquinho, etc…

Podemos comparar essa precária prestação de serviços com a sofisticada cadeia da produção do espetáculo esportivo: treinamento, assistência médica, alimentação regulada, campo bem tratado, concentração em hotéis, uniformes com materiais especiais, estádios com infraestrutura de alimentação, estacionamento, lugares marcados, etc…

Estamos lidando, em ambos os casos, com a mesma cadeia de produção, variando apenas a sua complexidade e sofisticação. Isto não quer dizer que este seja um problema trivial. A diferença entre o amadorismo e o profissionalismo é grande. O que os une é a paixão pela atividade que está sendo realizada. Não existe esporte sem torcida apaixonada, da mesma forma que o lazer só se organiza pela paixão dos seus praticantes.

A questão que surge aqui é se o lazer esportivo é uma forma de cópia do esporte profissional, onde os praticantes procuram imitar os seus ídolos ou se ele é uma forma espontânea de socialização.

A resposta a essa questão é bastante difícil. A observação empírica nos diz que, em primeiro lugar, os esportes mais populares são aqueles que a população mais pratica espontaneamente. Em segundo lugar, vêm os esportes que podem ser praticados em locais de mais fácil acesso.

Antigamente, quando a urbanização não tinha avançado tanto, os campos de várzea dominavam a prática do futebol nas camadas mais populares da sociedade[4]. Hoje, as praias estão substituindo os campos de várzea, pelo menos para uma boa parte da população das favelas da zona sul do Rio de Janeiro. Não existe mais uma clara separação social entre surfistas, jogadores de duplas de vôlei, de futebol de praia, de futvôlei, etc.

A praia, como um bem público livre, sem custo e de fácil acesso, passou a ser um palco de várias experiências de adaptação de movimentos de esportes profissionais, para as condições locais. Mas para ganhar legitimidade e ampliar sua base de praticantes no início, os grandes ídolos esportivos foram os seus principais divulgadores: Romário, Renato Gaúcho e Edmundo no futvôlei, Zico, Júnior e Edinho no futebol de praia e os jogadores e jogadoras da seleção masculina e feminina de vôleibol nas duplas de vôlei de praia.

Portanto, existe um misto de criatividade e de necessidade de legitimação por parte da sociedade para que as atividades esportivas de lazer passem a subir na escala da valorização social das suas atividades.

Essa rede de interesses econômicos e de negócios, a interação de vários mercados e áreas de investimento, e a sua integração em uma única direção, a valorização do espetáculo esportivo e do ídolo esportivo, fornece o impulso crucial para a sua contínua reprodução: a expectativa de ascensão social para as populações mais carentes. O sonho de se tornar um ídolo os anima a investir em estratégias de sobrevivência, que possam lhes dar um espaço de valorização social, mesmo que local, para que consigam reproduzir em seu universo algo da magia da vida dos seus grandes ídolos.

Notas:

  • [1] Lembre-se do lema da Grécia Antiga: o cidadão para ser completo tinha que ter “mens sana in corpore sano”.
  • [2] O esporte é sempre profissional, pelo menos no desejo do atleta. A performance está sempre na dependência de treinamento intensivo e diário. Deixa de ser lazer para se transformar em trabalho.
  • [3] É importante lembrar que um dos fatores de bom desempenho dos atletas de alto nível é que eles não percam o prazer de praticar o esporte, em face das inúmeras pressões a que estão submetidos.
  • [4] Alguns autores e cronistas esportivos na grande imprensa explicam uma boa parte da decadência técnica do futebol brasileiro por este motivo.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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