Na foto, o economista Gentil Corazza

O capitalismo atual vive uma situação paradoxal. Dominado por um liberalismo econômico radical, o neoliberalismo, defendido e propagado como tábua de salvação por seus arautos economistas, quanto mais persegue este objetivo, mais se afunda numa crise sem saída. Este ultraliberalismo, no entanto, não é novo nem único. O liberalismo acompanha a história do capitalismo desde suas origens, no decorrer da qual assumiu diferentes feições, desde as mais moderadas até as mais radicais, como é o caso do neoliberalismo atual. Como ideologia, sua função principal é tentar justificar e defender a economia capitalista, como se fosse uma economia natural, voltada para a produção de bens e serviços úteis à sobrevivência humana. No entanto, cada dia fica mais claro que seu verdadeiro objetivo não é este e sim produzir riqueza abstrata, monetária e financeira, valorizar o capital, para o que propõe o Estado mínimo e a mercantilização máxima da vida humana.

No entanto, ao contrário do que defende este liberalismo radical, o Estado sempre acompanhou a economia capitalista desde suas origens. Autores e paradigmas teóricos, tanto liberais como intervencionistas, lhe atribuem um papel econômico relevante. Para Keynes, o capitalismo sem o Estado será vítima de suas contradições. Para Marx, nem o Estado conseguirá salvar o capitalismo de suas crises, pois estas envolvem o próprio Estado.

Ao longo da história do capitalismo, o liberalismo assumiu diferentes modalidades e justificativas, desde sua versão mais radical, tipo laissez-faire, dos economistas fisiocratas e os da Escola austríaca, o liberalismo fundado nos “sentimentos morais” e na “mão invisível” de Smith, até o liberalismo ideológico do pensamento neoclássico. Em contraposição, mesmo antes das ideias intervencionistas de Keynes, o liberalismo neoclássico foi duramente criticado por Veblen, o pai do institucionalismo clássico, para quem os indivíduos não atuam no vazio, mas têm suas ações condicionadas pelas instituições em que estão inseridos.

Schumpeter defendeu teoricamente o papel crucial do Estado na inovação tecnológica e no desenvolvimento econômico. Keynes teorizou as fragilidades inerentes do capitalismo, sujeito a instabilidades e crises periódicas e a necessidade da intervenção estatal. As ideias de Keynes foram fundamentais para superar a crise de 1929 e a destruição provocada pelas duas guerras mundiais. Amparado pelas ideias e pelas políticas keynesianas, o capitalismo experimentou um longo período de crescimento e prosperidade social, o Estado de Bem-Estar, posterior à Segunda Guerra mundial, até meados da década de 1970. No entanto, mesmo durante este longo período keynesiano, o liberalismo econômico não despareceu. Ao contrário, ele se rearticulou na chamada Escola Austríaca e ficou se preparando para o combate das ideias e políticas keynesianas. Basta lembrar “O caminho da Servidão” de Hayek, sinalizando onde levaria o pensamento de Keynes.

Os anos 1970 marcariam a crise do Estado keynesiano e o triunfo do pensamento ultraliberal daquela escola, materializado nas políticas de Margareth Thatcher e Ronald Reagan. Foi o caminho aberto para o triunfo do neoliberalismo atual. O pensamento econômico brasileiro também pode ser dividido entre autores liberais, como Gudin, Campos e Bulhões e autores desenvolvimentistas, como Prado Jr, Ignácio Rangel e Celso Furtado.

Em linhas gerais, esta é a temática principal de meu livro, “Estado e Economia na História do Pensamento Econômico – uma análise crítica do liberalismo econômico”, publicado recentemente pela Editora Cirkula de Porto Alegre. O livro aborda a relação entre Estado e economia ao longo da história do pensamento econômico, como a economia política clássica, a teoria econômica neoclássica, as correntes keynesiana, austríaca, institucionalista, schumpeteriana, o pensamento de Marx e o pensamento econômico brasileiro. Não aborda a história da intervenção econômica do Estado, mas investiga como os economistas pensaram historicamente essa relação do Estado com a economia capitalista.

A principal conclusão deste estudo poderia ser resumida da seguinte maneira: embora a ideologia liberal clássica e neoclássica afirmem que a economia capitalista é autorregulável e, por isso, não necessita do Estado, seus principais autores acabam por atribuir um papel relevante ao Estado, quer para impedir que os conflitos entre classes sociais ameacem a acumulação de capital (clássicos), quer para corrigir falhas dos mecanismos do mercado (neoclássicos). Na realidade, o pensamento econômico liberal, à primeira vista, parece negar a importância e a necessidade do Estado. Essa visão pode ser encontrada nos fisiocratas (ordem natural), em Smith (“mão invisível”), em Ricardo e Mill (Lei de Say) e em Walras (leis naturais da economia pura). No entanto, o pensamento liberal é um pensamento contraditório, em seu duplo movimento, primeiro, negando a necessidade do Estado, por razões teóricas, e depois, por razões práticas, reconhecendo sua necessidade.

A ideologia liberal tem, também, uma dupla vertente. Primeiro, o liberalismo fisiocrata, embebido de uma visão naturalista da economia e da sociedade e a concepção de uma ordem natural a impor suas leis de funcionamento à atividade econômica. O mesmo viés naturalista tem o liberalismo de Walras e dos neoclássicos, um certo liberalismo “vulgar”, partidário de um irrestrito laissez-faire. Já o liberalismo smithiano, que se baseia na concepção ética do comportamento humano, é guiado pela “mão invisível” e pelos mecanismos autorreguladores do mercado. Em seu trabalho, todos buscam o máximo proveito individual. O interesse coletivo não passa de uma soma dos interesses individuais. Se cada um procurar conseguir o seu maior bem-estar individual, o resultado será um elevado nível de bem-estar social. Ou seja, o progresso social é resultado da liberdade de ação dos indivíduos egoístas. O Estado não deve intervir. O mercado atua de maneira eficiente e segura.

Entretanto, o pensamento de Smith abre-se à imposição do real. A sociedade não é harmoniosa, mas perpassada pelos conflitos entre as classes sociais. Não existem apenas indivíduos, mas também classes sociais com interesses conflitantes. O comportamento dos indivíduos não obedece apenas a seus sentimentos morais, mas é pautado também pelos interesses das classes a que pertencem. A apropriação privada da riqueza origina o aparecimento do Estado. Este é usado para a defesa do rico e de sua riqueza. Sua ação molda-se no sentido de favorecer a acumulação capitalista. Como vemos, o fundador do liberalismo econômico reserva um papel econômico relevante ao Estado.

Em Ricardo e Mill, a ação do Estado é restrita, porque a “Lei de Say” garantiria o funcionamento autorregulado do sistema. Como não há possibilidade de grandes crises, não é necessária a intervenção estatal. A “Lei de Say” tem uma função política de defesa do sistema econômico. Em Stuart Mill, existe ainda uma preocupação de natureza social a exigir a presença do Estado. A distribuição da riqueza deve guiar-se por critérios políticos e não apenas pelas leis econômicas.

A teoria econômica neoclássica, cujos princípios implicam uma negação do Estado, também acaba por lhe conferir um papel destacado como garantia do funcionamento da mesma livre concorrência. A economia pura atribui à ciência econômica um caráter de ciência natural com suas leis naturais invioláveis. A economia deixa de ser economia política para ser apenas economia, uma economia pura, sem contaminação social ou política. Essa separação do econômico e do político nega ao Estado qualquer papel econômico. Porém, o Estado não fica de fora desse tipo de raciocínio econômico. É pela porta dos fundos, da economia aplicada e da economia social, que ele acaba entrando. Assim, ele está presente e atua sem perturbar a lógica e o interesse do raciocínio puro. De forma sutil, o Estado entra na economia e acaba sendo um elemento importante não só pela sua ação no campo da economia aplicada e da economia social, mas por constituir-se no elemento-chave do funcionamento da mesma economia pura.

Desta forma, as teorias liberal clássica e neoclássica superam, na prática, seu pressuposto ideológico e acabam por conferir um amplo espaço de atuação ao Estado. No entanto, as mesmas nuances não estão presentes nos autores da Escola Austríaca, defensores de um liberalismo de natureza radical, que prega o endeusamento do mercado, Estado mínimo e mercantilização de todas as atividades humanas, públicas e privadas.

Em contraposição, as teorias keynesiana, schumpeteriana e institucionalista defendem a ideia de um Estado regulador e estabilizador da economia. No pensamento de Veblen, de Keynes e de Schumpeter, a questão do Estado apresenta diferenças e semelhanças com a teoria liberal. A diferença principal reside na premissa de que a economia capitalista não está dotada de mecanismos autorreguladores. O alvo principal de seu ataque é a “Lei de Say”. Nos economistas liberais, apesar de haver o reconhecimento da necessidade da intervenção estatal, esta não desempenha um papel tão decisivo como em Keynes.

Para Keynes e outras correntes de caráter institucional, o sistema está sujeito a crises periódicas e o elemento regulador reside fora do sistema, no Estado e nas instituições. Há, contudo, semelhanças entre essas correntes. A principal delas consiste em pensar a intervenção estatal como externa ao mecanismo econômico. O Estado intervém de fora e não a partir de dentro da economia. Há uma clara separação entre Estado e economia. Ainda que se torne um elemento decisivo, o Estado age de fora e daí nascem seus limites de sua ação.

A separação entre economia e Estado só vai ser superada na visão de Marx. Para ele, economia e Estado fazem parte de uma realidade social maior. Estado e economia e suas relações só podem ser compreendidos no contexto desta realidade social de que são partes constitutivas. A realidade econômica é uma realidade essencialmente social, formada por relações sociais entre homens. Como sabemos, a economia política não é uma ciência das relações entre coisas, como pensavam os economistas vulgares, nem das relações entre pessoas e coisas, como afirmou a teoria da utilidade marginal, mas das relações entre as pessoas no processo de produção. E a economia capitalista é formada por uma relação social básica que é a relação de produção. Ou seja, é a relação que se estabelece entre os trabalhadores, proprietários de sua força de trabalho, e os capitalistas, proprietários dos meios de produção. Essa relação social básica, constitutiva da atividade econômica capitalista é uma relação de poder.

Nesta concepção de economia política, o Estado não é externo à economia, nem atua a partir de fora, pois está enraizado nas relações de produção. Como afirmou Marx, o Estado tem suas raízes nas relações materiais da vida. Dessa forma, nem a economia nem o Estado são autônomos um do outro, como quer o pensamento econômico liberal. O pensamento de Keynes já concebe a economia com problemas estruturais, de tal ordem que requerem uma ativa e ampla participação do Estado, sobretudo nos momentos de depressão e crise. Todavia, apesar de significar um avanço importante e fundamental em direção a uma visão mais objetiva da realidade, ainda assim, as relações Estado-economia não são relações intrínsecas, mas de exterioridade. Só na perspectiva de Marx é que esta relação é concebida como uma relação orgânica e estrutural.

No pensamento econômico brasileiro estão presentes elementos dessas três perspectivas teóricas, a liberal, a keynesiana e a de Marx, sobre as relações Estado-economia. Entretanto, o mesmo não se limita a reproduzir essa discussão, pois contém elementos inovadores, como a abordagem original da questão do desenvolvimento nacional.

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