É difícil saber quando Freud chegou a Porto Alegre. A chegada de um livro seu aqui pela primeira vez pode ter sido na década de 30 do século passado, com os judeus alemães que fugiram do nazismo. Talvez ainda antes, mas tem um livro que relata sua presença na cidade – “O exército de um homem só” – do escritor Moacyr Scliar. Ele relata uma passagem aqui no aeroporto Salgado Filho, numa escala para Buenos Aires. Muitos perguntaram ao Scliar sobre essa história nesse livro de 1973, devido os diálogos entre Freud e Avram Guinsburg, falando sem parar do filho Mayer Guinsburg, que se dizia o Capitão Birobidjan. Avram estava muito assustado pois o filho se dizia o líder de uma nova sociedade, a Nova Birobidjan, a ser construída no Beco do Salso. Freud não soube como se livrar daquele homem inconveniente.

O escritor não esclarece em que idioma eles falaram, mas com esse detalhe o leitor, em geral, não se preocupa. O famoso médico austríaco, judeu como Avram, numa de suas raras frases, explica que estava só de passagem. É quando Avram diz, enfático: “Eu sei que o senhor vai dizer que está só de passagem, que vai para Buenos Aires. Sei de tudo, sou um homem bem informado, conheço sua carreira, admiro-o muito, acho que o senhor vai longe… Mas o senhor vai ter que me ouvir”.

Avram estava desesperado com a rebeldia de Mayer, com suas mishigás (loucuras) de um mundo novo. Só Freud poderia salvá-lo. O diálogo é, na verdade, um monólogo que só se conclui quando o avião levanta voo para Buenos Aires. Avram contou depois aos amigos: “Grande médico”, dizia, “grande sábio. Acertou direitinho o problema de meu filho. E vou dizer uma coisa: não cobra caro”. Essa passagem do livro é a mais famosa da novela, e foi publicada pela primeira vez no exterior, em Buenos Aires, no distante ano de 1974. A Sonia, minha esposa, deu a versão em português para o jornalista e escritor Tomás Eloy Martínez – que traduziu e publicou no jornal “La Opinión”.

Scliar sempre foi um fã de Freud e da psicanálise -fez várias análises – mesmo com alguma crítica. Em outro livro “O enigma da culpa” relata como sua geração desiludida com os grandes ideais do socialismo e do sionismo, buscou na psicanálise uma viagem para dentro de si como forma de se entender melhor e viver sem tanta culpa e sofrimento. Em algumas das conversas que tive com o Mico – como os amigos e familiares o chamavam – os temas foram a psicanálise e sua relação com o marxismo, depois, perguntava se havia diferenças entre ser psicanalista de direita ou de esquerda, ou sobre a melancolia, tema de um ensaio seu. Não conheci escritor mais curioso sobre Freud que o Moacyr Scliar.

Reli agora o livro “Exército de um homem só”, título paradoxal, pois como pode existir um exército de um só homem? A vida é feita de paradoxos, logo após 50 anos, é fácil perceber o quanto o livro segue vivo, bem-humorado, sonhador apesar das decepções. Na verdade, os judeus são pensados como um povo da utopia, desde os Dez Mandamentos, o monoteísmo ético. Depois vieram os Profetas, com objetivos pacifistas, de justiça social, e ao longo dos tempos sempre houve sábios e pensadores que mantiveram o ideal messiânico. Os religiosos esperando a chegada do Messias, os profanos desejando uma era messiânica na qual o amor sobrepujasse o ódio, o bem vencesse o mal. São sonhos, mas é a vida, sempre feita de sonhos e pesadelos, como tão bem está retratado na novela “O exército de um homem só”, um título paradoxal como a existência.

Clique para assistir o debate comemorativo dos 50 anos do livro “O exército de um homem só“, de  Moacyr Scliar

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Ilustração: Mihai Cauli
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