“1984” e “O Conto da Aia” trazem um mundo dominado por governos totalitários e sociedades que vivem sob extrema opressão e privação

Você já deve ter lido “1984”. Muito provavelmente num passado distante. Foi o meu caso. Mas a obra, por sua relevância e atualidade, voltou a ser tema de debates. Então decidi relê-la. Vivíamos a pandemia de coronavírus e, não bastasse, o catastrófico governo Bolsonaro. Logo surgiram paralelos entre aquele Brasil destroçado e a Oceania de George Orwell, onde um regime totalitário cria a figura do Grande Irmão, as teletelas, que vigiavam todos os movimentos do cidadão, e o Novidioma.

Uma das palavras deste novo idioma está no âmago do governo da Oceania. Ela foi criada para obter o controle máximo da linguagem sobre o indivíduo e a coletividade. Trata-se do duplopensar – o ato de aceitar ao mesmo tempo duas ideias contraditórias. O que tornava possível dizer mentiras deliberadas ou qualquer estupidez e acreditar piamente nelas. Ou negar a realidade e crer na veracidade dessa negação. Um método tão eficaz quanto o aplicado por Bolsonaro em seus eleitores.

Outro livro que indico neste Duo Literário é “O Conto da Aia”, um dos maiores romances feministas das últimas décadas, vencedor do Arthur C. Clarke Award. A obra da canadense Margaret Atwood – disponível também em uma aclamada série de TV – apresenta vários pontos em comum com “1984”. A começar pela lembrança do charlatanismo teocrático bolsonarista. Na trama, grupos extremistas religiosos acreditam que a América precisa ser “salva” do pecado e da corrupção e se unem em uma conspiração denominada “Os Filhos de Jacob”, que leva ao nascimento da República de Gilead.

As duas obras retratam um planeta em guerra e polarizado e sociedades que vivem sob extrema opressão e privação. E se no livro de Orwell uma das estratégias de controle é o Novidioma, no de Atwood é a proibição da leitura. Já os Olhos, a temida polícia secreta de “O Conto da Aia”, remetem às teletelas de “1984”. Outro ponto de convergência é a Semana do Ódio no romance de Orwell e a Particicução no de Atwood, uma verdadeira carnificina contra inimigos do regime. Dois eventos distintos com um objetivo comum: dar à sociedade oprimida a oportunidade de extravasar suas angústias.

Além de atacar o nazifascismo, “1984” faz críticas veladas a Stalin. Como nesta passagem sobre a história da Oceania: “Tudo começara no meio dos anos 1960, o período dos grandes expurgos durante o qual os líderes originais da Revolução foram eliminados de uma vez por todas. Por volta de 1970 não sobrara nenhum, exceto o Grande Irmão.” Algo semelhante ao que ocorrera em Gilead: “Os registros oficiais das reuniões dos Filhos de Jacob foram destruídos depois do Grande Expurgo do período médio, que desacreditou e liquidou um número considerável dos arquitetos originais da nova república.”

1984 (1949) – GEORGE ORWELL

O mundo se divide em três grandes regiões: Eurásia, Lestásia e Oceania. Winston, protagonista de “1984”, vive nesta última. Ele mora em um pequeno cômodo onde uma grande teletela acompanha todos os seus passos e gestos. Não bastasse, este misto de televisor e câmera de vigilância o enlouquece com incessantes propagandas governamentais. É até possível diminuir o volume, mas a programação permanece no ar. Assim como as câmeras, atentas 24 horas por dia.

Como quase todo cidadão da Oceania, Winston é membro do Partido. Se não fosse seria pior. Por isso tornou-se um zeloso e eficiente trabalhador do Ministério da Verdade. Sua especialidade é reescrever artigos de jornais do passado de maneira que o registro histórico apoie a ideologia do Partido. Já os artigos não revisados são destruídos. Desta forma não há como provar que o governo está mentindo. E quem ousa duvidar da “verdade” é punido de forma severa pela Polícia do Pensar. Nada escapa ao regime.

O Novidioma, como já dito anteriormente, é mais uma arma de controle social. Todas as palavras próximas, por exemplo, aos conceitos de liberdade e igualdade estão contidas na palavra pensamentocrime. E todas aquelas agrupadas aos conceitos de objetividade e racionalidade estão encerradas na palavra pensantigo. A vida sexual também é regulada pelo novo vocabulário: sexobom significa castidade, enquanto sexocrime denota imoralidade sexual. Este último cobre todos os “desvios”: adultério, homossexualidade, fornicação, masturbação, entre outros.

Secretamente, Winston odeia o Partido e o Grande Irmão, líder supremo da Oceania. Com a cara estampada em cartazes por toda parte, sua onipresença demanda respeito e adoração. Sua existência é quase surreal. Tanto quanto a de Emmanuel Goldstein, o inimigo público número um, a quem é atribuída a culpa de todos os males e carências sofridos pelo cidadão. Através do ódio a Goldstein, o povo dá vazão às suas frustrações. A guerra permanente com a Eurásia e a Lestásia tem o mesmo objetivo e se traduz numa poderosa ferramenta de controle social e estabilização do governo.

Aqueles que não são do partido – os proletas – vivem à margem da sociedade. Estão na base da pirâmide social. É nesse grupo que Winston deposita suas esperanças de resistência ao regime. Treinado para servir, obedecer e jamais discordar, ele começa a questionar a realidade insana em que vive, e seu primeiro ato de rebeldia é manter um caderno secreto onde faz anotações subversivas, longe dos olhos das teletelas. Até o dia em que se depara com a oportunidade de fazer algo maior. Algo que colocará sua vida em risco, mas que poderá levar à tão sonhada mudança.

O CONTO DA AIA (1985) – MARGARET ATWOOD

Um golpe teocrático num futuro próximo implanta uma sociedade cristã-militar governada pela “lei divina”. Onde antes eram os Estados Unidos, ergue-se a República de Gilead, constituída sob a base das raízes puritanas do século 17. Rapidamente, o novo regime suspende a Constituição, congela as contas bancárias e demite todas as mulheres empregadas. O sexo livre passa a ser proibido. E qualquer um que desafie a nova ordem – seja ativista político, intelectual, médico ou religioso de outro credo – é caçado e submetido às leis judiciais do Velho Testamento, que inclui torturas e mutilações.

Vítimas primordiais da nova república, as mulheres perdem os direitos e são proibidas de ler. A protagonista, Offred, que narra a história em primeira pessoa, tem 33 anos e é uma Aia. Antes de ser arrancada de casa, de perder o emprego e até seu nome verdadeiro, ela vivia com o marido e a filha. Hoje, pertence a um comandante do alto escalão do exército e à sua esposa. Embora viva sob extrema privação, Offred pode rezar e tem permissão para sair de casa uma vez por dia. Um curto espaço de tempo em que passeia sempre acompanhada por outra Aia e faz compras para os patrões em mercados onde desenhos substituem os letreiros, já que não é permitida a leitura.

Mas a real função de Offred, assim como a de todas as Aias, é procriar. Em um planeta assolado pela radiação, pela poluição e pela guerra, quase todas as mulheres de Gilead são estéreis. Por isso Offred foi tirada de sua família e passou a ser propriedade do governo. Ela integra uma casta de escravas sexuais mantidas para fins reprodutivos. Caso não consiga engravidar até um prazo estabelecido, pode se tornar uma Não Mulher, grupo que inclui também as lésbicas, viúvas, adúlteras e feministas, todas condenadas a trabalhos forçados em colônias onde o nível de radiação é letal. Se quebrar as regras, pode ser fuzilada e exposta em praça pública para servir de exemplo.

Nesta pujante narrativa, Atwood traz as mais obscuras relações entre política, sexo, poder e religião. E faz uma rica reflexão sobre liberdade, direitos civis e a fragilidade da sociedade em vivemos, cada vez mais exposta aos riscos de uma teocracia fascista: “Se não falarmos em política hoje, não podemos amanhã falar em Deus”, disse Jair Bolsonaro num culto em 2022. “Aprouve ao Senhor nos colocar à frente da nação. Aprouve a Deus nos colocar à frente da Presidência da República”, discursou Michelle Bolsonaro em fevereiro, em ato na Avenida Paulista. Que Deus nos livre de uma Gilead tupiniquim.

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Ilustração: Mihai Cauli  
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