Grifo entrevista Valéria Barcellos

Minha existência é política. Meu corpo é político.

Valéria Barcellos é multiartista, cantora com quase 30 anos de carreira, atriz, escritora, poliglota, premiadíssima, integrante do conselho curador do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul e uma mulher trans, preta. Antes de passar para as respostas da entrevistada, é importante definir algumas palavras usadas com frequência: Cisgênero refere-se à pessoa que se identifica, em todos os aspectos, com o seu gênero de nascença – por exemplo, uma mulher cis é uma pessoa que nasceu com o órgão sexual feminino, se identifica com o gênero feminino e se expressa socialmente como mulher; Transgênero é a pessoa que não se identifica com o seu sexo biológico, mas sim com um gênero diferente daquele que lhe foi atribuído biologicamente. Uma mulher transgênero nasceu com pênis, porém possui uma identidade de gênero feminina. Essa pessoa está em desacordo com as características de gênero que são atribuídas aos homens.
Antes de passarmos a entrevista, vale reproduzir algumas perguntas feitas por Valéria Barcellos a todos nós, pois elas resumem o que está em discussão.

  • Quantas pessoas trans vocês conhecem?
  • Com quantas vocês convivem?
  • Vocês foram à casa de quantas delas?
  • Quantas foram na casa de vocês?
  • Com quantas já passaram as festas de fim de ano?
  • Com quantas pessoas trans você riu?
  • De quantas você riu?
  • Quantas pessoas trans já foram alvo do teu afeto?
  • E quantas já foram alvo de tua raiva?
  • Por quantas pessoas trans você já teve desejo e teve vergonha disso?
  • Quantas dessas pessoas trans você já teve orgulho de apresentar como amiga ou amigo?

“Revejam, em suas respostas, o conceito de inclusão, o conceito de vivência e de sobrevivência. E comparem, a partir de agora, com suas relações com pessoas não trans. Depois disso eu quero que vocês pensem na frase que é subtítulo do meu livro: vocês me conhecem porque têm medo, ou têm medo porque me conhecem?”

 Na cabeça de vocês, eu não sou mulher, sou ‘qualquer coisa’

LÚ – Então, Valéria, tu és uma voz ouvida, ouvida através de tua arte. Como tu pensas a arte como esse instrumento não só pra te expressares, mas a arte com poder de ampliar o horizonte das pessoas para ouvirem a voz das pessoas que muitas vezes não são ouvidas?

VALÉRIA – Eu acho que é a melhor maneira de dizer as coisas. Eu gosto sempre de pensar a palavra Arte dividida em duas: ar e ter. O ar que eu tenho. Eu trabalho com o ar. Trabalho com coisas que não se toca; mas que se sente. A gente se faz sentir através dos fazeres artísticos. Eu gosto de pensar na sociedade contemporânea enquanto uma sociedade que tem uma certa dificuldade de colocar em prática os conceitos mais básicos. O respeito, por exemplo. E gosto de meus fazeres artísticos como disseminadores dessas coisas. Se eu estou numa exposição de arte, se eu estou no palco, cantando, as pessoas jamais irão tirar dessa memória isso. Tenho um acesso afetivo. É uma mensagem subliminar, algo que a gente faz nas entrelinhas e que acaba ficando nas entranhas das pessoas. Ninguém vai esquecer que teve a oportunidade de assistir uma cantora, que por acaso é uma cantora trans. Ninguém vai esquecer de uma exposição fotográfica que mostrava a realidade de uma pessoa trans. Eu acho que os fazeres artísticos têm muito mais responsabilidade social do que se imagina. Talvez os artistas não tiveram esse clique tão rápido e tão preciso de entender que sua arte vai muito mais que uma tela, que uma música, que uma novela. Tem uma responsabilidade social gigante atrás disso.

TARSO – Embora a dimensão histórica e social seja muito diferente em muitos aspectos, tu enfrentas uma barra pesada muito assemelhada com a da Nina Simone, não é? Há uma identidade?

VALÉRIA – Certamente. E o que é mais curioso de se pensar é que se passaram tantos anos e a gente ainda tá falando do princípio básico que é o respeito. Eu não tô falando de aceitação. Se eu aceitasse, eu te chamava: “Paulo, quer morar comigo?” E tu aceita ou não. Isso é aceitação. Agora, respeito, que é uma premissa básica… É muito louco a gente estar falando do respeito a uma premissa básica há tanto tempo! Quando a Simone de Beauvoir disse que “não se nasce mulher, torna-se uma”, ela estava falando implícita nesse conceito. Ela não iria querer ser de qualquer maneira essa mulher submissa como emblema de vida, que tenha dedicação total ao marido, etc. e tal, porque há outras possibilidades. Ela está dizendo que há outras possibilidades, não é só o que a gente está vendo. Talvez quando a gente pense numa pessoa trans, numa pessoa preta no nosso país, o “tornar-se” ainda é entender, entender em que essa pessoa está se tornando. E ainda entender o que essa pessoa é. Nós, pessoas trans e nós pessoas pretas estamos lutando por um direito básico que as pessoas cisgêneras como vocês ainda não entenderam, não precisam pensar, que é o direito a ser. Vocês nos dão o direito de estar. Eu posso estar aqui, ocupando este espaço, posso estar escrevendo um artigo, posso estar. Agora, ser, de maneira plena, ir e vir, ainda não nos é dado esse direito. Nem como pessoa trans, nem como pessoa preta. Há algum tempo eu ganhei um prêmio, o “Mulher cidadã”, que é a maior honraria dada a mulheres no Rio Grande do Sul. No discurso, eu agradeci, disse “obrigada pelo prêmio, embora alguns de vocês não me considerem nem mulher, nem cidadã. Tanto que quase me impediram de receber o prêmio. Na cabeça de vocês, não sou mulher, sou ‘qualquer coisa’, nem sou cidadã, porque não tenho direito sequer de ir ao banheiro, por exemplo, de forma naturalizada, como vocês”. Eu entrei no banheiro da Assembleia e as pessoas ficaram me olhando de maneira esquisita.

[Grifo: o troféu “Mulher cidadã” foi atribuído pela Assembleia Legislativa gaúcha, em 2016, a Valéria Barcellos e a outras seis mulheres que se destacaram na defesa dos direitos, educação, promoção da participação política, profissionalização e geração de trabalho e renda, saúde, atividade comunitária em prol da mulher e o destaque de mulher na cultura. Valéria foi a primeira, e até agora a única, transexual a receber esse reconhecimento. Na Mesa Diretora da AL houve três votos favoráveis à indicação e três abstenções. A presidente, Silvana Covatti, desempatou favoravelmente].

Então, a gente ainda está lutando pelo direito de ser. Guardadas as devidas proporções, sim, a gente tem muito em comum [com a vida da Nina Simone]. Mais do que se imagina, talvez.

TARSO – Valéria, tu referiste o drama do banheiro. Podes discorrer sobre isso? Isso é invisível pra mim.

VALÉRIA – Ahahaha! É, é completamente invisível. A sociedade trabalha com o binarismo de gênero muito fortemente. O binarismo de gênero é muito colonial. A gente precisa descolonializar as ideias. Eu tive câncer no ano passado e, nesse processo quimioterápico e radioterápico, fiquei com o cabelo curtinho, o que é sinal binário que significa “homem”. Todas as vezes que saio para viajar, no aeroporto, em um bar, eu sempre penso duas vezes se eu preciso realmente ir ao banheiro ou não.  Eu posso ser hostilizada no banheiro feminino – no banheiro masculino, nem pensar, não vou porque não sou homem, sou uma mulher trans. Eu sofreria mais uma violência. São coisas que a cisgeneralidade jamais pensa, jamais pensa que se possa passar. Eu tenho duas amigas trans que estudavam na PUC-RS e passaram por duas violências gigantescas. Uma, teve uma infecção urinária de tanto segurar o xixi, porque era hostilizada no banheiro. Ela acabou desistindo da faculdade. A outra não tinha o nome social respeitado. Na chamada, o professor insistia em chamá-la pelo nome civil, que ela não tinha modificado ainda. Ora, estão empurrando essas pessoas para a marginalidade, para um lugar que não pertence a elas. Não é uma opção delas, é uma imposição. Isso é uma violência que certamente as pessoas cisgêneras nem se dão conta, porque a gente passa por isso e vocês não passam. É um sentimento que eu tenho repetidamente na minha vida de ocupar certos espaços. Imagina em tua vida, Paulo, todos os dias, ao sair da tua casa ter que pensar que na próxima esquina alguém vai te xingar de alguma coisa. Que não outra esquina vão rir da tua cara. Que tu vai dizer “bom dia” e te responderão “bom dia, senhor”. Que tu vais chegar num lugar pra comer, tomar um café, e vais olhar para os lados e ver as pessoas com a doença do cotovelo: cutucam as outras com o cotovelo e te apontam: “olha lá, olha lá”. Isso é recorrente nos meus dias. E nos dias de todas as trans. Todos têm que entender de uma vez por todas: pessoas trans não são pessoas cis, mas merecem o mesmo respeito. A gente às vezes cai nessa ilusão de que temos que ter uma passabilidade cisgênera [parecer o mais cis possível], uma vida cisgênera, pra que a gente conviva. É bem verdade que isso facilita muito o nosso viver. A gente não precisa pensar tanto se faz isso ou se faz aquilo. Mas isso não nos abona. A gente só está teatralizando a nossa vivência.

TARSO – Tem um corte de classe aí também?

VALÉRIA – Ah, com certeza! Paulo, pra tudo na vida tem um corte de classe e um corte de raça. Tudo fica “normal” quando se tem dinheiro e se é branco. Normal vem de norma, norma vem de regra, e as regras foram feitas por brancos, cisgêneros e ricos. Então, certamente tem recorte de classe aí. Ora, se eu chegar em algum lugar usando uma marca famosa – é claro que terei que estar respaldada por alguma pessoa branca, é lógico -, eu até me misturo naquele ambiente. Mas é como misturar leite com toddy: mistura, mas ainda é visível. Nós somos brasileiros…

TARSO – A transgênera rica também encara rejeição, mais que estranhamento?

VALÉRIA – A gente precisa entender e acabar com essa falácia de que somos aceitas. Nós somos toleradas nos lugares. E digo mais: pessoas trans são toleradas, muitas delas, graças ao recorte de classe, graças a seu poder aquisitivo. E graças também a serem brancas. E é preciso que a gente entenda como é urgente falar em raça quando se fala em pessoas trans. Uma mulher trans preta não é somente isso, ela traz muitos signos junto com ela. Primeiro, ela traz na vivência dela a vivência de um homem negro, que traz na sua vida a falocentria, a imagem da bestializada sexual, um homem que é voraz sexualmente, que tem um pinto gigante. Depois, ela traz junto o signo da mulher negra, a romantização dos seus problemas, que “ela é guerreira”! Isso não me contempla. Aí tem a mulher preta hiper sexualizada, que tem uma sensualidade, que tem uma coisa… uma malemolência que é bestializada. Em Santo Ângelo tem uma expressão – sou de Santo Ângelo, interior do Rio Grande do Sul – diziam que a mulher preta têm uma lixa na vagina, que a vagina é diferente, que o sexo com a mulher preta é diferente. Por último, depois de ela ter passado por tudo isso, fisicamente falando, o que as pessoas veem, ela traz o signo da mulher trans preta, que junta os dois e ainda o fetiche. Uma mulher trans é fetiche. O que eu mais recebo de imbecilidade nas redes sociais é “nossa! eu tenho uma curiosidade de ficar com uma mulher trans!…”

A gente precisa pensar nesse recorte racial. Tem uma junção da falocentria do homem negro com a hipersexualização da mulher negra e da romantização e fetichização do corpo, da existência, da presença de uma mulher trans em todos os espaços.

LÚ – Eu sou uma pessoa trans não binária. E não tenho necessidade de mudar minha expressão de gênero. Sou uma pessoa que estou dentro, compreendendo meus privilégios de leitura social. Uma coisa que pra mim é muito chocante pensar: em 2018, a transgeneridade deixou de ter CID [Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde]. Gente, faz três anos! Quando se fala que a homossexualidade deixou de ser considerada doença em 1990 e poucos, já é um absurdo! A transgeneridade deixou de ser considerada doença há apenas três anos! E no Brasil já se tem, de certa forma, bastante avanço na legislação para as pessoas LGBTs.

VALÉRIA – Com todos os atrasos, o Brasil ainda tem avançado…

LÚ – Agora que estou na Itália, vejo que é mais atrasada a legislação em relação ao Brasil nos direitos LGBTs.

VALÉRIA – E a Itália é um dos países que mais consome pornografia trans no universo. Há uma máxima das travestis que vão tentar a vida na Itália como prostitutas que diz que “o que o Brasil rejeita, a Itália aceita”. Qualquer pessoa que se viu atraída pela prostituição se dá bem na Itália.

Nove anos atrás, a gente estava aqui engatinhando pela carteira com nome social, que já é um certo avanço, em Paris as pessoas ficavam chocadas: “como assim, no Brasil já existe isso?!” É um contrassenso gigantesco. Lú, se tu fores olhar a minha sentença de retificação de nome, ela é assustadora. Eu fiquei muito chocada com o que está escrito lá. Fala em uma doença, ela me trata como uma louca. Fala sobre uma doença mental. E esse era o ponto em que a gente tinha que chegar para poder ter a retificação do nome. Para poderes ser A Fulana, O Fulano, no caso de um homem trans, terias que provar pra Justiça que a gente tinha uma doença mental!

LÚ – Tinha que ter um laudo psiquiátrico pra poder fazer a retificação do nome.

VALÉRIA – Eu tive que passar por uma perícia forense. Lembro como um dos episódios mais loucos da minha vida. O psiquiatra forense estava muito… porque isso não devia ser muito comum naquela época. Ele me fez uma perguntas horríveis: “Você conversa com a televisão?” Eu ia dizer: “Sim, dou boa noite ao William Bonner”, mas lembrei que estava sendo avaliada. “Você tem pensamentos suicidas?”, “você tem vontade de matar alguém?”, eu pensei “neste momento, tenho vontade de matar você”. Fez uma série de perguntas sem sentido pra mim. O quanto a sociedade precisa evoluir em todos os aspectos, principalmente nesse aspecto jurídico e psiquiátrico! Isso a gente só vai entender através da vivência, da convivência e da pergunta.

LÚ – Em que momento uma pessoa cis precisa provar para um médico que ela é uma pessoa cis?

VALÉRIA – A cisgeneralidade nem imagina que esse tipo de pergunta é feita pra gente todos os dias.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial.

Entrevistadores: Caco Bisol, Lú Vieira, Marco Antonio Schuster, Rodrigo Schuster e Paulo de Tarso Riccordi. A entrevista está publicada na íntegra no Grifo nº 14, de nov/2021.

Ilustração: Mihai Cauli

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