À medida em que avança o calendário político de encerramento do ano e se estabelecem as primeiras tratativas visando os arranjos para as eleições de 2022, o desespero começa a provocar o aumento da temperatura no interior da família Bolsonaro, do núcleo duro do governo e de seus principais aliados espalhados por todo o território nacional. Afinal de contas, as pesquisas de opinião continuam apontando a liderança isolada de Lula na preferência para o pleito de outubro e as evidentes dificuldades do capitão em se consolidar como alternativa viável para um eventual segundo turno. Além disso, as enquetes relativas ao desempenho do presidente e de sua equipe também seguem em baixa, caracterizando, portanto, maiores complicações para quem está em busca da reeleição.

Assim, a única alternativa que resta colocada sobre o tabuleiro no Palácio do Planalto é mandar mesmo às favas o doutrinarismo da ortodoxia postulada há décadas por Paulo Guedes e dar um cavalo de pau na condução da política econômica. Uma série de movimentos já vinha sendo conduzida nessa linha desde as eleições para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em fevereiro deste ano. Naquele momento, Bolsonaro se envolveu diretamente na disputa para assegurar a vitória de Arthur Lira (PP/AL) e Rodrigo Pacheco (DEM/MG) em tais postos estratégicos no comando do poder legislativo.

Para completar o retorno triunfante do fisiologismo ao centro do poder na Esplanada dos Ministérios, Bolsonaro indicou o Senador Ciro Nogueira (PP/PI), liderança estratégica no grupo do Centrão, para o posto mais importante do governo: a chefia da Casa Civil. A partir desse movimento foi sinalizado com toda a clareza, para quem tivesse um mínimo de experiência com a dinâmica da política em nossas terras, que o objetivo essencial do presidente é a sua própria recondução a um novo mandato. E ponto final.

Quanto a parlamentares e aliados o foco se mantém na liberação de cargos e verbas nesse período de 10 meses que antecede o pleito. Isso significa a necessidade de mudança na postura extremista que marcou o primeiro triênio de Paulo Guedes no comando da economia. Segundo a lógica de quem pretende seguir agarrado a Bolsonaro, o governo precisa apresentar elementos concretos para a população em termos de políticas públicas, além de permitir que seus aliados consigam realizar da maneira mais livre possível um grande volume de despesas visíveis para seu eleitorado. Para tanto, os gastos orçamentários precisam ser liberados das amarras da austeridade e do teto imposto pela Emenda Constitucional (EC) nº 95.

Guedes 2.0: traidor ou gastador?

Essa operação vem sendo colocada em marcha ao longo dos últimos tempos e a principal incógnita se referia a qual pudesse ser a conduta do superministro frente à iminência de tal transformação. A grande “surpresa” veio pela forma como o banqueiro incorporou a necessidade de tamanho estelionato e de como aceitou tranquilamente a servir de avalista – ou de capacho, diriam os críticos mais ácidos – de um governo com propostas que ele mesmo classificara como “populista, gastador e irresponsável”.

Uma imagem repetida por diversos analistas políticos reflete bem o novo momento e a mudança de postura: o tigrão teria se transformado em um gatinho. Assim, esqueçamos a fase da soberba na relação com interlocutores e da arrogância no trato com os próprios membros do poder legislativo. Guedes terminou por se converter em refém de suas próprias armadilhas. Agarrou-se ao cargo como pôde, ainda que tenha que cometer a cada novo dia mais uma traição de tudo aquilo que dizia ser questão de princípio para si mesmo.

Ocorre que ele não ficou apenas na implementação de tal fraude no ideário do rigor da austeridade fiscal. Na tentativa de manter as aparências sabe-se lá para qual incauto e desavisado em matéria de análise econômica, o aprendiz de liberalismo à la Pinochet formulou gambiarras escandalosas para flexibilizar o teto de gastos sem fazê-lo e incorporou como sendo de sua autoria a solução de emendas parlamentares do Relator, tão bilionárias quanto secretas e escandalosas. Aceitou a manutenção de programas de governo que sempre havia criticado – como é o caso do Bolsa Família maquiado e piorado sob o rótulo bolsonarista de Auxílio Brasil – desde que servindo agora à causa da reeleição do seu chefe. Mas a essência maldosa de seu ser não sofreu nenhuma mudança. O dolo, a intenção de promover o mal a todo custo, segue sendo também a marca de sua passagem desastrosa pela Esplanada.

Vale tudo pela reeleição

Guedes mantém sua obsessão pela estratégia de destruição do Estado brasileiro e pelo desmonte de sua capacidade de implementação de políticas públicas voltadas ao atendimento urgente das necessidades da maioria da população. A bússola do falastrão metido a todo-poderoso se mantém norteada apenas para a defesa intransigente dos interesses do financismo e de seus agentes. Tudo se passa como se Guedes houvesse percebido a encrenca em que se meteu e pretendesse ao menos terminar o ano com algum tipo de credibilidade junto aos que haviam apostado em sua capacidade de levar a cabo a agenda plena do neoliberalismo a partir do início de 2019.

No entanto, a gestão de Guedes também tem sido marcada pela incompetência. Não se trata apenas de promover maldades ou de trair seus princípios ortodoxos. A maneira como conduziu a economia durante o primeiro ano foi bastante irresponsável e o crescimento do PIB mal superou 1% ao longo de 2019, sem que houvesse qualquer constrangimento externo. O ano da pandemia foi ruim para a maior parte dos países do mundo, mas a maneira como o governo tratou a questão por aqui contribuiu ainda mais para agravar o quadro do genocídio, que terminou por provocar a morte de mais de 600 mil pessoas. A inflexibilidade na política da austeridade fiscal se combinou tragicamente ao negacionismo de Bolsonaro, de forma que a postura passiva do governo aprofundou ainda mais o quadro da recessão e dificultou a superação da crise, uma vez que isto exigiria a disposição em elevar gastos com ajudas a setores que haviam sido prejudicados com a doença e com as suas consequências.

A recessão de 2020 foi de -4,1% e muito dificilmente esse índice será superado positivamente no ano que vai se encerrar agora no final do mês. As previsões para 2022 também apontam para um PIB fraquinho, inferior mesmo a 1%. Assim, o saldo do quadriênio de Guedes à frente da economia brasileira deve refletir uma estagnação do crescimento das atividades, sem contar o agravamento da crise social, da liquidação dos serviços públicos, da expansão da miséria e do retorno do país ao mapa da fome no mundo.

Guedes parece ainda apostar suas fichas em uma eventual recuperação da popularidade do governo graças à sua suposta condescendência tardia em flexibilizar a austeridade fiscal. Na verdade, ele parece conservar a ingenuidade de que será lembrado e recompensado pelos bons serviços prestados a Bolsonaro e seus aliados, mais até mesmo do que pelas promessas não cumpridas às expectativas maximalistas que fez de forma desavergonhada ao mundo das finanças à época da campanha em 2018 e durante o primeiro triênio do governo. Aguardemos, pois.

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Ilustração: Mihai Cauli 

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