Todas as crianças, desde muito cedo, escutam histórias. A gente é feito de histórias dos antepassados, desde o nome próprio no qual se projetam os desejos inconscientes dos pais num nome e num sobrenome. A experiência de escutar histórias está ameaçada pela televisão e o celular, mas ainda é indispensável na educação. Não por acaso o escritor Gabriel García Márquez deu à sua autobiografia o título “Viver para contar”. Viver para contar tanto o vivido como o imaginado. É preciso histórias para aprender, para ser e na análise as histórias contêm muitas versões. Nas versões residem as riquezas que dormem na outra cena que vive em cada um.

Desde criança escutei histórias bíblicas, e uma frase era repetida: “O passado é ainda o passado”. Frase que Walter Benjamin associaria à palavra experiência, pois escutar as histórias é uma riqueza de vida, uma riqueza transmitida pelas gerações. São as histórias vividas pelos pais que enriquecem os filhos. As histórias são essenciais nesse novo tempo em que diminuiu o ato de contar. O tempo não pode ser dinheiro, o tempo é o de narrar histórias dos antepassados negros, índios, e todas as imigrações.

São marcantes também as histórias lidas e uma das tantas que recordo é a de Boris Cyrulnik que tanto escreve e faz pela resiliência. O menino Boris perdera toda sua família judia que foi morta pelos nazistas, mas ele mesmo preso conseguiu escapar. Perdeu sua família, perdeu o rumo, sentia-se despersonalizado, sem referências, estava só, sobrevivente culpado começou a desafiar a morte. Aprendeu a nadar para superar os desafios do mar que podia o matar nos turbilhões. Desafiando as circunstâncias, justificava sua vida flertando com a morte. Trepava em árvores altas e se soltava agarrando um galho e outro até chegar ao chão. Escreveu que se expunha ao julgamento por Deus e, vencendo, se sentia merecedor da vida. Enfrentando os riscos de morte, aprendeu a ter coragem de viver, e a vida foi se tornando atrativa, e ele conquistou o direito de ser.

Enfrentar desafios e superá-los aumenta o amor, gerando potência para desfrutar a existência. Tenho a sorte de receber às quartas-feiras, cedo pela manhã, a visita de um amigo que aparece aqui para contar uma história. Logo após falar, ele se vai e eu fico pensativo como no dia em que contou sobre sua energia, dando o título a uma crônica, “Falta energia”. Em função das sequelas da Covid-19, se sente sempre cansado, e fiquei impressionado com sua coragem, percebi sua determinação e fiquei contagiado. Ah, esqueci de esclarecer que as visitas do amigo vêm através do e-mail, e ao ler eu o escuto e assim a gente conversa: ele fala e eu escuto.

As histórias trazem beleza à vida, excitam a imaginação, aumentam as experiências da existência. Poucas histórias são mais espantosas que o ensaio escrito por Étienne de La Boétie, o tão lembrado amigo de Montaigne. Escreveu com uns 18 anos o célebre “Discurso da servidão voluntária” de cunho humanista. Ressalta que “o grande presente da voz e da fala nos dá o prazer de uma declaração comum de nossos pensamentos, uma comunhão”. Conclui que a comunhão é contra a servidão, e no ganho da liberdade.

Hoje a luta é também contra o racismo estrutural, e pela diminuição da desigualdade social no Brasil. Sobram perguntas sobre os porquês da Terra ter sua maior floresta, a Amazônica, devastada, queimada. Perguntas de quem são os armados e os bilionários aliados e como os poderes têm sido cúmplices na destruição. Histórias geram perguntas, e perguntar é cada vez mais preciso. (Publicado no Facebook do autor, em 17/12/2021)

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Ilustração: Mihai Cauli

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