Ao longo dos anos 80 e primeira metade dos 90, a inflação era objeto de reflexão e teorização por 10 entre 10 economistas brasileiros. A partir de 1994 – com a implantação do Plano Real – o tema foi expurgado da agenda.

Do meu ponto de vista, este expurgo foi um grave equívoco. Em primeiro lugar, porque, de fato, a inflação não foi debelada no Brasil. Se retiramos o segundo semestre de 1994 (período de ajuste) e tomamos apenas os anos completos (até 2020), a inflação acumulada durante a vigência do Real foi de 447% (de acordo com o World Economic Outlook – FMI). Neste mesmo período, a inflação média mundial foi de 216% (mesma fonte). Os preços no Brasil variaram duas vezes mais que a média mundial. É verdade que o Brasil se sai melhor se tomamos por referência apenas a inflação dos vizinhos latino-americanos. Mas a vantagem é mínima. A despeito da hiperinflação venezuelana e da persistente inflação argentina, os preços no conjunto de nuestra América se elevaram, em média, apenas 18,5% acima dos preços no Brasil nos 26 anos considerados.

Mas a persistência inflacionária sequer é o problema mais grave. A grande questão é a enorme desigualdade das taxas de variação dos preços dos distintos segmentos da economia. Se avaliarmos a inflação pelo índice de preços ao consumidor ampliado (IPCA), (ignorando atacado e construção civil), chegamos a um valor acumulado discretamente menor nos 26 anos considerados: 417,18%. Com este indicador podemos diferenciar a evolução dos preços de três subgrupos distintos: transportáveis, não-transportáveis e monitorados.

O primeiro grupo é composto pelos bens, passíveis de importação e exportação internacional: fundamentalmente, bens agrícolas e da Indústria de Transformação (IT). O núcleo do segundo grupo são serviços gerais (comércio, alimentação fora do lar, saúde e educação privadas, etc.) que não são objeto de controle de preços pelo governo. O último grupo são bens e serviços de utilidade pública (energia elétrica, gás, gasolina, telefonia, aluguéis, etc.), cujos preços são monitorados pelo governo por regras de indexação. Parcela expressiva da “cesta” do último grupo foram privatizados por FHC.

A tabela abaixo apresenta a evolução da IPCA (média anual e acumulada por período) por segmento nos distintos governos desde a implantação do Plano Real.

O segmento com as menores taxas de inflação são os “transportáveis”. A evolução de preços destes bens correspondeu a 70% da média geral e a 40% da evolução dos monitorados ao longo de todo o período. Por quê?

Em primeiro lugar, porque o “monitoramento” dos preços dos governos FHC, Temer e Bolsonaro visava elevá-los, e não os deprimir. Mas o mais importante é que o controle da inflação está baseado na âncora cambial: quando o dragão alça a cabeça, o Banco Central eleva os juros, atrai capital volátil e valoriza o real. Neste processo, todos os bens importáveis e exportáveis tornam-se mais baratos. Um sapato ou um saco de soja que custa 20 dólares no mercado internacional ingressa (ou é vendido) por 200 reais se a taxa de câmbio é 1 dólar = 10 reais. Mas cai para 100 reais se a taxa de câmbio se altera para 1:5. O que obriga os produtores internos a também baixarem seus preços.

Só que este movimento não afeta em nada o poder de precificação de serviços, monitorados ou não. Assim, quem “paga o pato” do sistema nacional de combate à inflação é o segmento transportável. Com dois detalhes: 1) o Brasil é o único país do mundo que alcança ter até três safras agrícolas de verão; 2) o crescimento chinês tem elevado a demanda – e os preços! – das commodities agrícolas em dólares. De sorte que não são estes transportáveis que vêm perdendo rentabilidade, mas apenas a IT. As mudanças metodológicas no cálculo do PIB dificultam comparações longas. Entre 1995 e 2020, a IT passou de 16,81% do PIB para 11,3%. Enquanto isto, a Agropecuária e a Indústria Extrativa tiveram sua participação ampliada de 6,7% para 8,9% do PIB. A âncora monetário-cambial em operação desde 1994 no Brasil penaliza apenas a Indústria de Transformação. Mas, aparentemente, os economistas – inclusive os de esquerda – estão felizes com a “solução” que encontramos em 1994. Até quando?

Ilustração: Mihai Cauli

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Clique aqui para ler o artigo “Aceleração inflacionária em 2021: como chegamos até aqui?”,  recentemente publicado no TP.