As metas de inflação do CMN e sus expectativas de rentabilidade com os juros altos

A imagem de cientistas passivamente empenhados em decifrar o livro da natureza, resguardados pela objetividade e neutralidade, é modelo de procedimento para os economistas. Poucos consideram, contudo, que a ciência vai muito além da descrição, ajudando a criar os mundos que descreve; isto ocorre quando a defesa de uma teoria por agentes relevantes tem poder causal sobre o comportamento das outras pessoas.

Para entendermos como o discurso dos economistas pode ser “performativo”, é importante chamar a atenção para o caráter reflexivo da ação humana. Quando conhecemos e agimos, damos nossa contribuição para alterar o mundo e também o que sabemos sobre a base para a ação subsequente. Assim, é de se esperar que o que fazemos muda o padrão geral das previsões futuras. Sendo o futuro incerto, o problema para os economistas passa a ser o de ajustar suas descrições às previsões. Os mais céticos dirão que tal ajuste não passa de profecias autorrealizáveis. Na longa “tradição neoclássica”, por exemplo, os agentes têm interesses próprios. Se alguém acreditar nessa afirmação e se essa crença for compartilhada pelos outros agentes, e este alguém acreditar que eles acreditam, então o que era simplesmente uma suposição pode se transformar em realidade.

Se quisermos entender o que liga as profecias autorrealizáveis e o caráter prescritivo enfatizado pela ideia de performatividade, precisamos abrir mão do preceito de ciência positiva, tão caro à tradição neoclássica. Desta feita, ficará claro que os economistas não necessitam descrever a realidade; sua missão é dizer o que a economia real deve ser e propor soluções e dispositivos para torná-la assim. Particularmente, esse parece ser o caso com o Regime de Metas de Inflação no Brasil, cujos pilares são o reconhecimento de taxas de inflação baixa e estável e a importância das expectativas inflacionárias na política monetária.

As metas de inflação são definidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), cabendo ao Banco Central adotar as medidas necessárias para alcançá-la, no caso, a administração da taxa de juros de curto prazo. Aqui reside um ponto: para definir as metas de inflação, no que se baseia o CMN? Nas expectativas, novamente fundadas em diversos pressupostos derivados da tradição neoclássica, como expectativas racionais, taxa natural de desemprego, moeda neutra e inconsistência da política monetária.

Se os supostos fossem outros, acaso as ferramentas e resultados das políticas não seriam outros? Segundo um conceituado crítico da política de juros altos no Brasil, como a inflação é essencialmente uma questão de expectativas coletivas, o que importa é avaliar corretamente as expectativas dominantes, ou seja, saber o que pensa a maioria vale mais do que ter uma opinião própria fundamentada. Neste sentido, cabe a pergunta retórica: qual a melhor forma de controlar as expectativas senão difundindo a crença na posse do modelo “correto” de interpretar a realidade? Ao que tudo indica, os resultados do Regime de Metas estão na capacidade institucional da teoria econômica de permitir fazer existir o que descreve. De outro modo, de dizer “como o mundo tem de ser, para que seja como a ciência diz que é”.

Ademais, como os economistas não têm “o olho de Deus”, com acesso epistêmico privilegiado sobre o mundo, não se pode descartar que a técnica esteja sendo usada para criar um mundo que satisfaça certos interesses. Pois, vejamos: se os beneficiados com os juros altos são os representantes da sociedade no CMN, o que os impede de definir a inflação esperada de acordo com suas expectativas de rentabilidade em termos de taxas de juros? Ter em mente essa circularidade nos leva, portanto, a aventar que a teoria econômica disponível não só é performativa, mas o é em um sentido que escancara sua falsa neutralidade.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone 

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