Enquanto o excruciante processo eleitoral norte-americano se arrasta, com o vencedor das eleições, o democrata Joe Biden, só recentemente podendo iniciar a transição dada a recusa do presidente Donald Trump em aceitar sua derrota nas urnas, alguns dos problemas da democracia dos EUA restam evidentes.

Está claro que a simples saída de Trump da Casa Branca não significará o retorno a uma ansiada normalidade institucional, supostamente perdida com a sua desconcertante eleição em 2016. Dois fatores contribuem para o quadro atual de turbulência institucional. O primeiro deles é estrutural à democracia norte-americana; já o segundo é conjuntural, fruto da atual situação do Partido Republicano.

Desde a sua primeira encarnação, na Grécia antiga, até o século XIX, a palavra “democracia” era identificada com o exercício direto do poder pela massa o que, se entendia, descambaria para a tirania da maioria, o governo da populaça, sinônimo de desordem, irracionalidade e ruína. Ensina Norberto Bobbio que “o povo corrompido pelos demagogos é um tema clássico da polêmica antidemocrática”. De fato, Platão e Aristóteles lhe reservaram críticas acerbas e todos os pensadores políticos conservadores – Hobbes à testa – lhe devotaram escandalizado horror. Mesmo os progressistas de então preferiam usar o termo “república” para designar seu ideal de liberdade e governo do povo, ao invés de “democracia”.

Não é de admirar, portanto, que os Founding Fathers, ao inventarem no final do século XVIII aquilo que seria a democracia representativa, tenham se cercado de salvaguardas à pura e simples vontade popular. James Madison, no Artigo 10 de O Federalista, expressamente descartou a ideia de uma “democracia” ao afirmar que os EUA não poderiam ser uma “democracia pura”, mas sim uma “república”, com o que se referia “a um governo em que se dê o regime de representação”. Robert Dahl, em A Constituição Norte-Americana É Democrática?, comenta acerca da posição de Madison que é provável que ele tenha seguido o que era então a “tradição do republicanismo, que tanto na teoria como na prática inclinava-se um pouco mais para a aristocracia, o sufrágio limitado, a preocupação com os direitos de propriedade e o medo do populacho”.

Reflexos dessa preocupação foram a instituição de eleições indiretas para presidente da República e para o Senado, eleito o primeiro por um colégio eleitoral, escolhidos os membros do segundo pelas Assembleias Legislativas estaduais (em 1913, através de emenda à Constituição, foi estabelecida a eleição direta para o Senado).

Além disso, a forte desconfiança de uma administração central relegou aos governos estaduais a legislação eleitoral, num sistema fundamentalmente calcado no consenso entre os participantes, na atenção às tradições políticas e na assunção de valores democráticos comuns. Em outras palavras, não existe no sistema norte-americano – para o bem e para o mal – um órgão estatal semelhante à Justiça Eleitoral brasileira, responsável por organizar as eleições, emitir normativas e decidir eventuais querelas entre os partidos adversários. Basicamente, trata-se de um sistema que funciona desde que todos concordem que deva funcionar, na medida em que seu funcionamento seja entendido como algo positivo em si mesmo e essencial para a vida da comunidade.

A consequência prática da eleição Presidencial através do colégio eleitoral não é outra senão que a maioria do povo norte-americano não elege, necessariamente, seu Presidente. A disputa é regionalizada em cada uma das cinquenta unidades da federação que, a depender da sua população, remete ao colégio eleitoral um número específico de delegados que representam o candidato vencedor no seu respectivo estado. A busca pelo número mágico de 270 delegados (a metade mais um do colégio eleitoral) faz com que, na prática, a disputa eleitoral se concentre nos chamados swinging states, ou seja, estados em que a hegemonia de um ou de outro partido não esteja firmemente consolidada. Assim, por exemplo, tanto George W. Bush, em 2000, quanto Donald Trump, em 2016, perderam no voto popular para seus adversários democratas, mas ganharam no colégio eleitoral. Na verdade, nas últimas oito eleições presidenciais – portanto, desde 1992 – o Partido Republicano ganhou apenas uma eleição presidencial no voto popular (em 2004, na reeleição George W. Bush). Nesse sistema, portanto, o princípio democrático “uma pessoa, um voto” é desconsiderado, permitindo que, eventualmente, minorias organizadas em arranjos locais de poder tenham um peso desproporcional no cenário político nacional.

Este é exatamente, hoje, o caso do Partido Republicano. Steven Levistky e Daniel Ziblatt, em Como as Democracias Morrem, mostram como, pelo menos desde os anos 1980, o partido tem adotado nos estados por ele controlados uma série de medidas para restringir o sufrágio universal (voter suppression) – mirando, sobretudo, o voto das minorias – e manipular a criação de distritos eleitorais, com a intenção de produzir maiorias artificiais favoráveis ou diluir maiorias potencialmente adversas (gerrymandering), com o objetivo de se perpetuar no poder e remediar seu crônico déficit de votos. Mais do que isso, desde 2008, com a eleição de Barack Obama, o Partido Republicano na oposição passou a utilizar a disrupção institucional e a obstrução legislativa como táticas de atuação, adotando um discurso de deslegitimação de seu adversário sem precedentes no século XX. Ao ponto de Levitsky e Ziblatt o terem considerado como um “partido político antissistema”; algo gravíssimo num sistema bipartidário que, como dissemos, tem seu funcionamento baseado no consenso entre as partes e na preservação dos costumes políticos.

A radicalização do Partido Republicano e sua caminhada rumo à extrema direita – ao conservadorismo reacionário, ao fundamentalismo cristão, ao libertarianismo anarcocapitalista e às pautas abertamente racistas e xenófobas – também começou bem antes de 2016. Rick Perlstein, em Before the Rain, Nixonland e The Invisible Bridge, mostra como a chamada “estratégia sulista”, a partir do final dos anos 1960, fez do Partido Republicano o abrigo de todos os inconformados com o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos – unindo-os aos já inconformados com o New Deal de Roosevelt. Movimento à direita que a instrumentalização do partido pelas grandes corporações, na construção da hegemonia neoliberal, só fez recrudescer ainda mais a partir da década de 1980.

Paradoxalmente, no entanto, e à despeito do discurso populista, é a própria extrema direita que tradicionalmente serve como Cavalo de Troia para as medidas mais radicais a favor do capital e contra o trabalho.

Assim, a vitória de Donald Trump nas primárias republicanas foi apenas o paroxismo de uma trajetória iniciada muito tempo antes e da qual o “trumpismo” é apenas um sintoma. Lembremos, aliás, que a vitória de Trump aconteceu contra a vontade do establishment do partido, que se viu arrastado por sua própria base. Se os republicanos costumavam brincar com o fogo do extremismo de direita para manter seu eleitorado mobilizado, nada puderam fazer quando Donald Trump surgiu como the real deal e, arrastando todas as fichas, implodiu qualquer pudor democrático ou verniz de civilização que, por ventura, ainda estivesse sendo preservado a bem das aparências.

Portanto, o grande desafio que se apresenta para a democracia americana é como restaurar a normalidade institucional num sistema político bipartidário em que um dos participantes – refém de uma base cada vez mais radicalizada – não reconhece, de saída, a legitimidade de sua contraparte e age, sistematicamente, para paralisar qualquer iniciativa de seu governo. Foi o que se pôde ver durante a administração Obama, quando os republicanos, tendo maioria no Legislativo, conseguiram, entre outras muitas obstruções, bloquear a nomeação de um juiz à Suprema Corte durante mais de um ano, subtraindo ao presidente o exercício regular de uma prerrogativa constitucional.

A questão é verdadeiramente dramática. Somente mudanças efetivas, capazes de atacar a desigualdade socioeconômica crescente e o empobrecimento da classe média assalariada, revertendo o resultado de 40 anos de políticas neoliberais, pode desinflar o ressentimento e o mal-estar que servem de combustível ao extremismo de direita que hoje intoxica a sociedade norte-americana e o próprio Partido Republicano. No entanto, muito embora os democratas tenham mantido a maioria na Câmara dos Representantes, o controle do Senado ainda está sob disputa – a depender do resultado das eleições senatoriais na Georgia. Caso os republicanos consigam manter a maioria, tudo indica que, pelo menos até a eleições de meio de mandato em 2023, veremos uma reedição do obstrucionismo selvagem dos anos Obama.

É claro, não podemos esquecer que o próprio Partido Democrata teve papel de destaque na implementação das políticas neoliberais, sobretudo nos anos Clinton – conforme conta Joseph Stiglitz em Os Exuberantes Anos 90 – e que, portanto, não é inocente no que vemos hoje. Também não está claro se a futura administração Biden estará, efetivamente, comprometida com qualquer mudança real na economia – sendo o próprio Joe Biden uma figura do establishment democrata.

No entanto, parece evidente que apenas remover Donald Trump da Casa Branca não será suficiente para exorcizar o fantasma da extrema direita e restaurar a normalidade institucional nos EUA. Será preciso também modificar a agenda neoliberal – que, de modo geral, tem sido a de ambos os partidos – reconhecendo que ela tem produzido desigualdade, empobrecimento e instabilidade política. Somente com uma melhora efetiva nas condições de vida da classe média trabalhadora se poderá resgatar a ideia de que as instituições democráticas são relevantes e capazes de proporcionar bem estar e justiça social.