Similaridades entre a Tunísia e o Brasil

Ilustração: Mihai Cauli

Poderia dizer que meu interesse pela Tunísia veio da antiga Cartago, mas seria mentira. Sim, ouvi falar de Cartago bem cedo, lendo Asterix, mas só fui saber que ela ficava na Tunísia muito mais tarde. Vi, bem novo, belas imagens da Tunísia no Cinema, mas – novamente – não sabia que era a Tunísia. Para mim era apenas Luke Skywalker e o Planeta Tatooine de “Guerra nas Estrelas” e também foi mais tarde que soube que as filmagens foram feitas em uma cidade, de verdade, chamada … Tataouine).

Meu grande interesse pela Tunísia começou com a Primavera Árabe. Iniciada em dezembro de 2010 (assisti “de camarote”, enquanto morava em Portugal), quando um vendedor de frutas no interior da Tunísia, Mohamed Bouazizi, de 26 anos, cansado de ser achacado por policiais corruptos, ateou fogo em si mesmo. A seguir, uma sucessão de revoltas populares rapidamente se espalharia por todo o Norte da África e mesmo para outros países de maioria árabe fora do Maghreb.

Quando assisti às imagens de Bouazizi, me lembrei de um amigo advogado que, cansado de ser vítima de corrupção, me disse uma vez que queria fazer um “suicídio cívico”. Perguntei a ele o que seria isso e ele me respondeu: tenho vontade de um dia dizer, em público, – “V.Exa. e V.Exa são ladrões”! “Serei preso, processado, condenado, pois sei que não vou conseguir provar, mas todos vão saber que eles, de fato, são ladrões, terei prestado um serviço ao povo…”.

O fato é que a Primavera Árabe foi um sopro de esperança em quem acredita em transições democráticas conduzidas não por cima (como os E.U.A. tentaram no Iraque e no Afeganistão), mas pelo próprio povo.

Logo a Tunísia saiu dos holofotes pois o Egito, país geopoliticamente considerado o coração do mundo árabe, aderiu ao movimento. Derrubou seu ditador (Mubarak) – após o movimento da Praça Tahrir –, e realizou eleições, das quais saiu vencedor o candidato da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi, eleito e empossado em 2012 e … derrubado em 2013. “Tudo como dantes no quartel de Abrantes”.

Em outros países a Primavera Árabe não teve melhor sorte. Na Líbia derrubaram Kadafi, e veio o caos. No Bahrein (mais conhecido por uma etapa da Fórmula 1) o movimento foi reprimido por uma invasão providencial da Arábia Saudita. O máximo que se conseguiu foram alguns tímidos avanços em países que, como o Marrocos, já não estavam entre os mais autoritários.

A Tunísia era diferente. Lá, o ditador Ben Ali foi derrubado, a democracia foi instaurada. E um processo constituinte com ampla participação popular resultou na Constituição da Tunísia de 2014. É a única constituição adotada de forma democrática como resultado da Primavera Árabe e, certamente, a mais democrática Constituição de um país árabe, adotando um regime relativamente próximo do sistema francês.

Algumas características pareciam explicar isso: um grau de educação da população bastante elevado, incluindo uma razoável integração e participação das mulheres; um partido islamista relativamente moderado e que (ao contrário do Egito), embora seja o maior partido, está longe de alcançar a maioria, tendo que ceder durante o processo constituinte e no dia a dia das disputas parlamentares.

Desde a queda do ditador Ben Ali foram três presidentes e parlamentos eleitos, sucessivos governos regularmente constituídos, tudo – do ponto de vista de uma democracia formal – parecia indo bem. Tenho, desde então, acompanhado e torcido pelo sucesso dessa exceção democrática. Mas veio a crise econômica, as receitas ortodoxas, o desemprego, a omissão internacional, a Covid …

Todos os golpes se parecem

Eis que o presidente da Tunísia (Kais Saied), um professor de direito constitucional (quanta ironia) ultraconservador, eleito ano passado, talvez inspirado em Fujimori, talvez inspirado no pai do bananinha, fechou o parlamento tunisiano. Demitiu o primeiro ministro e mandou prender diversos políticos e empresários.

O presidente fez tudo isso alegando que estava apenas aplicando um dispositivo constitucional (artigo 80 da Constituição da Tunísia). De fato, este autoriza o presidente a tomar medidas excepcionais em situações emergenciais, mas com todas as letras, afirma que “durante este período a assembleia de representantes do povo ficará em sessão permanente”. E qual o pretexto? Resguardar o espírito da revolução de 2010 e combater a corrupção (qualquer semelhança com o Brasil é mera coincidência … mas o “centrão” deveria se cuidar)! A democracia na Tunísia foi posta em xeque.

Há poucos dias, em 24 de agosto, a medida foi prorrogada por tempo indeterminado … xeque-mate!

A interpretação do presidente tunisiano só pode ser comparada – em termos de cretinice constitucional – ao que alguns pretendem fazer com o artigo 142 da Constituição Brasileira. Interpreta-se esse artigo como se as Forças Armadas pudessem, a pedido do presidente, intervir nos outros poderes, aplicando a uma democracia uma versão piorada (e inexistente) do “poder moderador” da Constituição do Império. O que se fez na Tunísia e o que alguns querem fazer aqui tem o mesmo nome: golpe de estado. Mas há uma diferença: na Tunísia a democracia acaba de receber o xeque-mate. No Brasil, o movimento ainda não foi feito. Temos que impedir que seja.

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