Quando uma alma toca a outra, nasce a surpresa, o amor, a alegria. Esse toque pode ser um gesto, o canto, uma palavra. O Brasil foi tocado pela frase de Eunice Paiva no filme “Ainda estou aqui”: “Nós vamos sorrir. Sorriam.” A alma do povo brasileiro vibrou na noite do Oscar, um toque de entusiasmo, pois através da arte foi recuperada a memória. A injustiça que ocorreu no caso do deputado Rubens Paiva, que foi torturado e morto, reviveu no filme. Entretanto, o diretor Walter Salles, seguindo o livro de Marcelo Rubens Paiva, destacou como Eunice liderou a família com coragem e dignidade diante da crueldade. De onde ela tirou a sabedoria de discordar do jornalista que desejava uma foto séria? Não se sabe, foi uma surpresa ela dar a ordem que era preciso sorrir. Entretanto, arrisco a pensar que o Brasil aprendeu a sorrir, a rir de forma solta e descontraída, com os negros que foram escravizados e que, à noite, dançavam e cantavam nas senzalas. Cantos e danças das tribos africanas que foram essenciais para permanecerem vivos.
“Nós vamos sorrir. Sorriam.” tocou nossa alma, e tocar a alma não é fácil – e quando ocorre, surpreende. Logo, recordei a expressão “tocar a alma” da peça “Hamlet” de Shakespeare, no ato III, cena 2, quando os amigos de Hamlet estavam desconfiados. Imaginaram que o príncipe sabia algo mais sobre como seu pai fora assassinado. O príncipe astuto percebe que seus velhos amigos desejam extrair dele seus segredos, pois agora estavam a serviço dos assassinos de seu pai. Então se escuta um som de flauta, e Hamlet propõe a um deles que a toque, e este diz não saber, mas Hamlet insiste, dizendo que é fácil. Frente à nova recusa, exclama: “Pensais que sou mais fácil de tocar que uma flauta?”.
Tocar a alma ocorre na prática psicanalítica nos momentos em que as palavras tocam o inconsciente desconhecido. Seja algo que o psicanalista diz ao analisando ou o que este diz ao analista. São momentos, nada mais que momentos, mas aí ocorre um verdadeiro encontro, um encontro que toca o inconsciente, a psique. É como um fim de piada exitoso – a piada e sua relação com o inconsciente – ou uma frase surpreendente de uma criança. Um dia, viajava para a praia, quando o neto José, de dois anos e meio, disse: “Olhaaa, o passarinho está feliz!”.
A palavra psicanálise significa análise da alma, psique em grego é alma, e no mundo psi se usa a expressão realidade psíquica. Análise vem do grego, análysis, dissolução, e é o processo de decomposição de uma substância. Daí, por exemplo, análise sanguínea, que é a decomposição do sangue para se conhecer como está composto. Portanto, a psicanálise – análise da alma – precisa ser decomposta para ser conhecida. Ao ser decomposta, a alma é tocada e os sinais são variados: uma palavra que faz o paciente sorrir, ou cair uma lágrima; às vezes é dita uma frase do tipo: “Nunca havia pensado nisso antes”. A análise, escreveu Lacan, está mais para o witzig, o espirituoso, logo, criar um clima descontraído na conversa facilita a abertura da alma. Aos poucos, na análise, a pessoa vai descobrindo alguns dos mistérios de sua alma. É uma odisseia em busca de aprender de si, cuidar de si, uma viagem atravessada por desejos inconscientes. Há muito para se conhecer, e assim mudar o ponto de vista marcado pelo peso, para uma visão de maior leveza ao entender seus pais e a si.
Em tempos sombrios, tempos de violência, os momentos poéticos abrem as portas para recuperar a disposição para acreditar. Uma das lições de Eunice Paiva foi enfatizar a leveza diante do peso, o sorriso diante da lágrima, ao dizer aos seus filhos, diante dos jornalistas: “Nós vamos sorrir. Sorriam.”
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Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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