Em História não há “sorte” ou “azar”. Muito menos “se”. Não é sustentável que eventos possam ocorrer fora de uma cadeia de possibilidades. Até mesmo a ação individual “inesperada” precisa de uma conjuntura que a viabilize e suporte.

Embora seja uma bela figura literária, não acho muito adequada a imagem construída por Joan Garcés[i], para quem o governo da Unidade Popular foi “emoldurado por dois assassinatos”: os dos generais constitucionalistas René Schneider, em 25/10/70, e de seu sucessor no comando geral das Forças Armadas, Carlos Prats, em 30/09/74. Vital, ou mortal, para o governo também foi o segundo crime de morte, o do adido naval do presidente, o capitão de navio Arturo Araya, em 26/07/73. Do ponto de vista da estratégia golpista, a renúncia do general Prats manteve em 1973 o cronograma da derrota, mais que do governo, da esquerda chilena. Mas, ainda assim, esses eventos fazem parte de um movimento bem urdido, muito mais amplo, anterior aos assassinatos e à renúncia que, foi claro, causaram ferimentos gravíssimos no governo Allende ao retirarem válvula de segurança que retardava a explosão do panelão onde já se cozinhava o golpe de Estado. Três eventos, mesmo graves e importantes como o foram, que poderiam adiar, mas não deter a máquina golpista já em movimento, uma vez que o gabinete em La Moneda não reagia com a necessária potência.

Os planos para a derrubada do governo de Salvador Allende começaram antes de ele vencer a eleição presidencial de 4 de setembro de 1970, mas poderiam ter sido confrontados antes do golpe. O presidente não conseguiu que o Congresso aprovasse o Estado de Sítio pedido pelo general Prats para poder desarmar e efetivamente proscrever o grupo fascista Patria y Libertad e cortar suas ligações com a tropa. O presidente também recusou a proposta de Prats de prender os militares golpistas responsáveis diretos e os apoiadores do ensaio de golpe do Tancazo, assim como recusou a proposta de cortar a cabeça do comando golpista, enviando para a Reserva (aposentando) um certo número de generais das três forças e dos Carabineros. Ao não exercer a autoridade, Allende perdeu-a.

Está suficientemente contada e documentada[ii] a decisão da administração Richard Nixon/Henry Kissinger (ou o inverso) não admitir que um governo de esquerda – principalmente se eleito conforme as regras democráticas – pudesse ser bem sucedido e servisse de exemplo ao continente. E pagou para derrubá-lo.

Havia duas décadas que o modelo para grande parte da esquerda latino-americana era o da guerrilha cubana. A criação de focos de luta armada rural e urbana foi o modelo, aplastado pelos militares ao longo dos anos 60 em todos os países onde foi tentado. Ao final da década, a começar pelo próprio Che Guevara, quase todos os líderes foram mortos ou presos e suas organizações desmanteladas, com o consistente financiamento, assessoramento, apoio tático e material, treinamento das tropas e lubrificação dos meios de comunicação pela CIA e o Departamento de Estado. O boqueio econômico internacional ao Chile e o locaute interno provocaram desabastecimento e inflação de 1% ao mês. E, ainda assim, no auge da crise econômica, houve crescimento eleitoral da Unidade Popular, que em 4/3/73 aumentou o número de deputados e senadores, ao obter 44,23% dos votos para o Congresso Nacional, ainda que não obtivesse a maioria do Congresso.

Em 1972 e 73 aos partidos conservadores já não bastava usarem as prerrogativas legais da Maioria para limitar e, logo, impedir Allende de governar. Quiseram beijar o capiroto e pedir que os militares derrubassem o governo da Unidade Popular – e o entregasse a eles, qual Carlos Lacerda. Resultou no que sempre acontece quando erguem a tampa da caixa dos demônios: os militares tomaram o poder para si e começaram fechando o Congresso e suspendendo o Judiciário; proscreveram os partidos de esquerda, mas também os de direita; cassaram os inimigos, mas também as vivandeiras; levaram Allende à morte, assassinaram Schneider, Prats, Neruda, Letelier e pouco depois também Eduardo Frei e afastaram vários generais criadores do próprio golpe. Aliás, só quem permaneceu e se deu muito bem, como sempre e em todas as latitudes, foi a imprensa de direita. El Mercúrio, como O Globo, nadou na caixa forte.

Sem que se pretenda a escrita determinista, terem se mantido no cargo Schneider e Prats apenas adiaria o tsunami sobre um governo que – só ele – confiou nas regras da democracia.

Esse é o pano de fundo da movimentação dos personagens que entrevistei para um livro sobre exilados brasileiros no Chile. Eu quis contar como indivíduos viveram os dias da Unidade Popular estando lá. E também perguntei a cinco dezenas de exilados brasileiros de esquerda, que já estavam fugindo da ditadura brasileira e foram atropelados pelo golpe de Estado no Chile, o que fizeram no dia 11 de setembro de 1973 desde que despertaram até dormirem (quem conseguiu), já dentro da ratoeira armada desde 1970 pelos militares, elite civil e agências de inteligência norte-americanas. A ideia não é original. Como o jornalismo sempre fez e historiadores têm feito, ver como os indivíduos vivem um fato coletivo melhora sua compreensão. A maioria dos entrevistados foi para o Chile em busca de proteção – e a receberam, sobejamente, do Estado e do povo.

Muitos exilados quiseram se integrar à resistência ao golpe. Mas, como os militantes de base do MIR[iii], da esquerda do PS[iv] e do MAPU[v], também esperaram, inutilmente, as armas que deveriam chegar. Ninguém pode garantir, mas, nas condições dadas, era alta a probabilidade de ter sido uma chacina ainda maior, pela desproporção dos recursos. Os meninos da base estudantil do MIR treinavam com paus e pedras. Afora o pessoal com experiência na luta armada (alguns dos brasileiros, uruguaios, bolivianos, venezuelanos), raríssimos haviam empunhado alguma arma de fogo. Se houvesse.

Desde 8 de julho, a Marinha, Aeronáutica e Exército estavam realizando batidas em fábricas, poblaciones e sedes de partidos e organizações de esquerda atrás de armas em mãos de civis pró governo. Em dois meses de allanamientos nada encontraram além de arminhas de defesa pessoal e de caça, mas não era esse o objetivo de fato e sim conhecer e avaliar as instalações e capacidade de reação da esquerda. Simultaneamente, as Forças Armadas fizeram uma faxina em suas próprias tropas de todo e qualquer militar que pudesse se opor ao golpe de Estado. Marinheiros que denunciaram a preparação do golpe foram presos e torturados sem que o governo civil os defendesse. Vários comandantes foram detidos na madrugada do putsch e nas primeiras horas centenas de militares foram mortos dentro dos quartéis por colegas golpistas. No dia D e hora H, somente os golpistas estavam armados e aptos para o que viria. Foi o que a História registrou e o que nossos entrevistados viveram e me contaram.

Esta é uma história feita por jovens. Havia mais velhos, mas a maioria dos que aqui falam estavam pelos seus 25 anos ou menos. Um, por estar com 32 anos, recebeu o apelido de “Velho”.

É a história de jovens que não hesitaram em botar a própria vida em risco para enfrentar as ditaduras que lhes interromperam a adolescência e o sonhos das populações. A maioria encarou duas, vários até três ditaduras. Meninas e meninos que sofreram no corpo os horrores da tortura, da loucura, do sadismo de agentes do Estado, sob conhecimento e mando do topo da cadeia de responsabilidade.

Não por acaso, começaram se movendo contra a violência real e simbólica à sua vista – o fechamento de grêmios estudantis e centros acadêmicos, demissão de professores -, alçando-se à percepção de um sistema que proibiu a expressão política, a ponto de fechar o Congresso Nacional e destruir corpos por conterem ideias. E daí cresceram para a concepção da democracia para todos, do mundo ideal dos iguais, sem opressores e sem oprimidos, que lhes norteia a vida ainda hoje, aos 70, 80 anos, alguns, mais.

O livro que estou finalizando conta a menor fatia temporal das vidas desses jovens, mas não a menos intensa, os breves anos em que residiram no Chile governado por Salvador Allende. Atropelados pelo golpe de 1964 na adolescência, grande parte dos exilados brasileiros foi conhecer democracia e liberdade pela primeira vez naquele país, ainda que por breve tempo.

Não narro a complexa história da “via chilena para o socialismo”. Menos ainda analiso sua derrota política, antes que o fosse pelas armas. Eu não teria o que acrescentar aos estudos de fôlego realizados no Chile e no Brasil.

Escolhi outro caminho: como algumas pessoas viveram aquela circunstância histórica? Pretendi ouvir não personas, mas pessoas, que contaram trechos de suas vidas entre os dias mais felizes e os dias mais assustadores daquela efervescente década. Muitos, muitos, foram presos, torturados; seis foram assassinados. Ainda assim, muitíssimos dos que entrevistei afirmaram que os dias, meses e anos em que viveram no Chile antes do golpe de Estado foram os melhores de sua vida. Sonhando, lutando, vivendo, amando.

Referências:

  • [i]Escritor catalão-espanhol Joan Enrique Garcés, principal assessor político e amigo do presidente Salvador Allende. Autor de Allende y la experiencia chilena: Las armas de la política. Siglo XXI de España Editores, 2013; Chile: El camino político hacia el socialismo. Ed. Ariel, 1972.
  • [ii]Mas, ainda assim, continuam a surgir novos e novos detalhes escabrosos, com as permanentes liberações de mais documentos que estiveram classificados como Reservados nestes 50 anos.
  • [iii]Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR), criado em 15 de agosto de 1965. Apoiou, mas não integrou o governo da Unidade Popular. Seu secretário-geral era o médico Miguel Humberto Enríquez. Durante o governo da UP o MIR suspendeu suas ações armadas e concentrou-se na construção do poder popular através de de frentes de massa – Frente de Trabalhadores, de Camponeses, de Pobladores, de Estudantes Revolucionários e ocupações de áreas rurais e urbanas.
  • [iv]O Partido Socialista do Chile foi criado em 19 de abril de 1933. Quando estudante de Medicina Salvador Allende foi um dos fundadores. Durante o governo da UP seu secretário-geral foi o senador Carlos Altamirano.
  • [v]Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU), dissidência de esquerda do Partido Democrata Cristão, fundado em 19 de maio de 1969. Durante o governo Allende, o secretário-geral foi Óscar Guillermo Garretón. Em 1971 sofreu novo “racha”: não desejando assumir o marxismo, uma ala saiu e criou o partido Izquierda Cristiana, que também permaneceu na Unidade Popular, a coligação de sustentação política do governo.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  
Leia também “Chile 1970-1973: mil dias que abalaram o mundo“, de Thomas Posado.