Quem acompanhou o noticiário recente, se deparou com a assustadora notícia de que Maceió está afundando. A Braskem vem operando lá desde que as minas no subsolo da capital de Alagoas foram autorizadas – isso se deu em 1976, contrariamente à avaliação dos órgãos públicos que se ocupavam já da questão ambiental (que se tornou um verdadeiro tema político só na década seguinte). O governo biônico de Alagoas passou por cima (ou eu deveria dizer, passou por baixo?) daqueles que se preocupavam com uma catástrofe ambiental urbana e autorizou a exploração do subterrâneo da cidade.

Hoje há diversas cavernas artificiais produzidas pela atividade mineradora da Braskem. O Serviço Geológico do Brasil (SGB) confirmou o que todos suspeitavam há muito tempo somente em 2019: o afundamento de vários bairros que assustava os moradores (que tiveram de ser retirados de uma área enorme) deve aumentar em extensão e profundidade uma vez que as cavernas podem se tornar um único e imenso buraco que não sustentará mais todo o peso de cima, levando a cidade de Maceió a capitular. Nos últimos dias, o afundamento foi de 1,73 metro.

Essa notícia assusta. Em primeiro lugar pela catástrofe que está acontecendo e que se anuncia ainda maior. Em segundo lugar porque sua causa é humana e autorizada pelo governo, legalizada, e praticada por uma grande e respeitada empresa mineradora. Em terceiro lugar, porque isso não é nem mesmo novidade recente: como eu escrevi acima, o início da catástrofe data de 1976. E at last but not the least, porque infelizmente não é uma exceção na realidade brasileira: basta lembrarmos dos desastres ambientais em Minas Gerais, de Mariana, em 2015, também causado por uma empresa mineradora, a Samarco, como mais uma vez o foi o desastre de Brumadinho, de 2019, e desta vez a empresa mineradora não era outra senão a respeitada Vale do Rio Doce.

Mas estes são somente exemplos vultuosos de algo muito comum no nosso país, daquilo que a geógrafa Lisandra Pereira Lamoso, demonstra em seu excelente trabalho “Os territórios da mineração sob a lógica da acumulação financeira no capitalismo contemporâneo” (2022): que ultimamente, toda a montagem da empresa mineradora – entendida no latu sensu – está cada vez mais distante do poder e do interesse público e próxima do mercado de ações, e com isso sua lógica está dominada pelo furor da rentabilidade e distribuição de dividendos – o que prefiro dizer nestes termos: a preocupação de quem explora o solo e de quem autoriza é com seu bolso, com a bolsa e seu gozo, não com as consequências de seus atos para quem vive no local a ser deteriorado.

Relembro, a partir daí, a intervenção do psicanalista Jacques Lacan, em seu O seminário 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), a propósito de nossa escolha forçada pela entrada no campo simbólico, exemplificada pela homologia com a intervenção do ladrão diante da assaltada, ‘A bolsa ou a vida!’; sabemos tratar-se de uma falsa escolha, pois só podemos optar pela vida, uma vez que decidir pela outra implica na perda das duas. Ora, podemos dizer que, no que concerne à nossa relação com nossas terras, nós que vivemos no Brasil, estamos reiteradamente escolhendo a bolsa – salvo aqueles que não vivem aqui, que ao optar pela bolsa, não perdem a vida, quem perde é quem ficou por aqui. O Brasil parece ser um território onde não se quer construir uma casa.

Se o capitalismo contemporâneo, por ser neoliberal, opera diminuindo a participação do Estado na ordem pública, ao menos na história do Brasil, isso não é exatamente uma novidade. Diferente do modo como a coroa espanhola geriu suas colônias – especialmente as mais lucrativas, como o atual México -, centralizando a exploração de terras, coisas e pessoas nas mãos do representante da coroa, o vice-rei (BASCHET, 2004), a colônia portuguesa chamada de Brasil só se tornou centralizada com a chegada, após 300 anos de exploração, da família real ao Rio de Janeiro, em 1808 (GOMES, 2007).

Mesmo considerando as diferenças entre as abordagens de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936) e o problemático Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1933), incluindo aí as observações hodiernas de que a obra do segundo – para dizer o mínimo – não ultrapassa o racismo estrutural de nossa civilização brasileira, mas ao contrário, o reitera, ainda assim, ao menos em um ponto os dois cantam em uníssono: a coroa portuguesa (talvez por haver um número escasso de portugueses para um território de uma imensidão tamanha se comparado ao da Terrinha), deixou na mão de empreendedores privados, com fins lucrativos próprios, tanto o povoamento da colônia por parte de gente branca (e também de gente preta, já que a venda e compra de escravos também se formou como empresa privada) quanto a exploração das terras, coisas e pessoas (tanto os negros escravizados, como os chamados ‘índios’, bem como os brancos e pardos subservientes política e economicamente).

Nem mesmo outra instituição com um viés centralizador em território europeu, a Igreja, esteve presente nesta empresa; suas missões passavam ao largo da exploração laica na maior parte das vezes, e tanto elas quanto os incipientes padres de engenho (normalmente um irmão ou primo do senhor de engenho) tinham sua existência deixada sob rédea solta, comparado ao que se passava na península ibérica em tempos de Inquisição (a qual também chegou ao Brasil – vide o episódio do julgamento de Branca Dias [NISKIER, 2017] -, mas, de novo, nada comparado ao que se passou no dito Velho Mundo).

E estes empreendedores que vinham à Terra de Santa Cruz explorá-la para enriquecer pessoalmente e que, para tanto, não tinham escrúpulos em devastá-la, como se viu na exploração voraz do pau-brasil, eram chamados de brasileiros. Brasileiro é quem explora o pau-brasil. Mas metonimicamente, não necessariamente linguisticamente, mas psicanaliticamente, é quem explora a cana-de-açúcar e o ouro e o café e os indígenas e os negros escravizados e os negros após o período de escravização e o petróleo e a mão-de-obra barata e a produção agrícola industrial do agronegócio e a mineração em grande escala e (de)predatória de que falei no início do texto.

Brasileiro é a designação de um explorador: a construção de nossa história e das figuras identificatórias que alicerçam nossa existência se pautam no explorador. Se não somos mais exatamente uma colônia, ainda somos de extração. Somos extrativistas por conta da história, mas se a repetimos, a repetimos como sujeitos, não só passivamente, mas porque habitamos e nos movemos numa cartografia fantasísticaque orienta tanto o desejo como o gozode quem se diz brasileiro. É preciso todo um trabalho de elaboração para que os brasileiros se tornem brasilianos ou brasileses ou brasilenses mais do que exploradores de coisas, de terras e de gente.

Você sabe com quem está falando?, de Roberto daMatta (2020), mesmo que seu principal assunto não seja esse, lança luz sobre o fato de que até hoje o explorador de elite se recusa a obedecer à legislação que orienta a república democrática pois ela colocaria freios justamente à sua posição identitária de explorador e, ora bolas!, quem explora de modo predatório, necessariamente ultrapassa os limites e regras que ele mesmo reconhece, caso contrário não poder-se-ia chamar de exploração predatória: já era isso, aliás, o que os bandeirantes tão cultuados em São Paulo, faziam ao desrespeitar o tratado de Tordesilhas. Hoje, a exploração não se dá somente ultrapassando fronteiras geográficas horizontais, mas também verticais – como no caso de Maceió – e, para o que me interessa como psicanalista, fronteiras morais e subjetivas. A colonização tem efeitos traumáticosna subjetividade também dos colonizados, dos dominados. O jeitinho brasileiro de que fala daMatta é um desses indícios das estratégias defensivas para lidar com o brasileiro explorador, outro é a identificação com o agressor, de que já falava Ferenczi, no contexto psicanalítico, a respeito das defesas contra o trauma e que em nossa história pode ser identificada na figura meio histórica meio mítica do malandro. E mesmo numa figura também meio histórica meio mítica, nesse caso moldada para se encaixar bem na imagem do herói: Chico Rei.

O negro Chico Rei teria sido, diz a tradição oral, rei na África, mas foi escravizado por portugueses e acabou trabalhando nas minas de ouro de Vila Rica – atual Ouro Preto. Ele teria comprado sua alforria e se tornado proprietário da empresa de exploração da mina em que trabalhava. Reza a lenda que Chico Rei teria ainda comprado a alforria de seu filho e de outros pretos escravos que trabalhavam para ele mesmo. O fato é que a famosa mina conhecida como de Chico Rei realmente existe no subsolo de Ouro Preto; o subterrâneo da cidade histórica é um verdadeiro queijo suíço, de modo que esta é uma das razões pela qual em grande parte de suas ruas e ladeiras não é autorizada a circulação de ônibus e caminhões, por precaução contra um desabamento.

Chico Rei deu prosseguimento a uma mina já existente e fez com Vila Rica o que a Braskem está fazendo com Maceió. Pode-se argumentar que era o único jeito de Chico Rei conseguir dinheiro para libertar mais gente da escravidão. Concordo, mas o fato de a realidade se configurar de tal modo que este parecia ser o único jeito, apenas sublinha o que quero defender: o de que ser brasileiro, pelo trauma colonial, implica em repetir a fantasia exploratória e depredatória. A construçãode uma realidade, como Freud ensina em “Construções em análise” (1937), não pode ser facilmente separada da construção dedelírios e fantasias coletivos, mitos, que sustentam desejos.

Tentei demonstrar, neste fim de semana, numa palestra no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, onde fui generosamente muito bem recebido, que estou de acordo com a interpretação de Jô Gondar, de que nós brasileiros somos herdeiros de dois traumas que não conseguimos ainda elaborar: a escravidão e a colonização (2017). Lá falei mais sobre a escravidão e os destinos do racismo do branco contra o negro. O texto de hoje é, portanto, um complemento àquele, na medida em que se debruça mais sobre nossa herança colonial exploratória. É óbvio que os dois traumas se misturam, pois a exploração colonial incidiu também sobre corpos de indígenas e negros orientando o posterior discurso racista, mas o traço exploratório vai além do racismo e indica uma posição no mundo, tanto no que diz respeito à nossa relação com os objetos quanto com a noção de lar.

Quem explora um objeto nos moldes coloniais não o erotiza. O trata como descartável quando este perde seu uso de gozo. Se Lacan indica, ao pensar o discurso capitalista(1972), que nele o lugar do objeto é o de gadget apresentado pela indústria e pela técnica como complemento de gozo ao consumidor, pode-se dizer que no capitalismo tupiniquim, muito antes de se montar uma indústria da oferta de gadgets, uma indústria do consumo de massa, já se tratava de tomar as terras, em sua superfície para a monocultura empobrecedora do solo e em suas profundezas pela mineração destruidora de ecossistemas, como objeto a. Uma vez feita a exploração até o último lucro, parte-se para novas terras de modo nômade, atrás do gozo que falta. O caráter colonial-exploratório não é de amor à terra como lar, mas sim, como dizia Caminha, como terra que “tudo dá” (1500). Quando ela deixa de dar, ela que se dane, pois o extrator já encheu seu bolso e fez sua mudança para explorar alhures. Lar, para o colonizador, nunca é aqui. Pela mesma lógica, o colonizador toma os outros exploradores como concorrentes, quando não adversários.

Por isso mesmo, não se trata de construir laços com a vizinhança e fazer comunidade; ao contrário, se o vizinho é um outro explorador à altura, ou se faz pactos desconfiados e precavidos contra a traição (e nossa famosa política fisiológica – ao menos a fluminense – não opera assim?) ou se enxota ou destrói aquele (como fazem os milicianos e traficantes de drogas ainda aqui no estado do Rio de Janeiro). Se ele é mais poderoso, a gente trabalha para ele (tal como recebemos as empresas multi e transnacionais ou como os criminosos de todo o país se organizam como sucursais do PCC), para, ao menos, abocanhar algumas migalhas do seu repasto. E, enfim, se o explorador se percebe mais poderoso que o concorrente, o explora, o escraviza e, por isso, o teme – nossas elites escondidas atrás de muros, grades, cercas elétricas, atrás de verdadeiras casamatas, literalmente desenha a arquitetura desta lógica da vida cotidiana.

Quero dizer que a história colonial de 300 anos marcou o brasileiro como herdeiro, repetidor e sujeito identificado ao que ficou popularizado pelo nome de capitalismo selvagem. O brasileiro é fundamentalmente um capitalista selvagem. Se o Império instaurou um capitalismo de Estado  (reatualizado de modos diversos na Era Vargas, na ditadura militar de 64-85 e na constituição de 1988, com sua proposta de Estado de bem-estar social), sabemos que quando o Império meteu o bedelho nos negócios dos empreendedores privados pondo fim à escravidão, ruiu imediatamente, fazendo nascer a conhecida República do café-com-leite (GOMES, 2013).

Mais recentemente, dos anos 1980 para cá, o neoliberalismo emergiu como ideologia adequada aos interesses do brasileiro explorador, fortalecendo, de novo, a luta do capitalista selvagem contra o Estado. O governo federal sempre foi visto por aqui como um opressor que se mete onde não foi chamado quando trata de se regular a empresa capitalista. Não é por outro motivo que nas únicas ocasiões em que algum partido que se identifica como ‘de esquerda’ tenha chegado ao poder executivo federal, isso só foi possível com uma quase promessa, durante a campanha eleitoral, por parte do candidato, de que não implementaria de fato uma reforma econômica à esquerda, seja ela socialista ou não – ele não descaracterizaria o Brasil de sua base traumática colonial-extrativista-capitalista.

Talvez seja exatamente porque temos essas raízes profundas de extrativistas (e, aliás, raízes são de fato ‘órgãos’ extrativistas das plantas, adentram o solo para dali retirar nutrientes para o organismo que é visto à superfície), que a emergência do neoliberalismo não tenha encontrado no neofascismo um inimigo, mas um aliado.

O fascismo histórico sempre esteve ligado à gestão estatal de toda a existência, da macro e da micropolítica, mas o neofascismo cultiva um nacionalismo, uma ideia e um culto à nação que não são outros senão a tradição colonial – terra e gente a ser explorada para gozo de uma elite que não vê estas terras como seu lar. Por isso, é possível chorar com o hino nacional brasileiro batendo continência à bandeira estadunidense; é possível ser patriota depositando toda sua renda em paraísos fiscais fora do país; é possível acreditar se sentir mais em casa em Miami do que em Maceió e, nem por isso, deixar de ostentar todas as insígnias do fascismo nacionalista brasileiro do século XXI.

Vale, no entanto, lembrar que, pode até se sentir bem em Miami, mas justamente porque em Miami há um enorme gueto de brasileiros endinheirados (que vivem junto de outros ‘chicanos’ isolados dos idealizados W.A.S.P.), pois como bem lembra Jurandir Freire Costa, esta elite extrativista brasileira é, ela própria, vista pelos estadunidenses, europeus, japoneses ou outros cidadãos do chamado ‘primeiro mundo’ como jeca, inferior, primitiva, selvagem (2023), de modo que ela não tem um verdadeiro lar em lugar nenhum a não ser, creio eu, na atividade nômade da exploração e da pirataria.

O brasileiro, seja ele rico ou pobre (e talvez a exceção a essa definição sejam os povos originários) é um explorador, alguém que despreza e goza das terras que o enriquecem ou deveriam enriquecê-lo. O brasileiro é, nesta medida, o mais depurado exemplo da verdade do neoliberalismo global, desterritorializado, desapegado de quaisquer laços que não sejam os efêmeros propiciadores da extração de lucros, seguidos de descarte, como Joel Birman bem o descreve numa dinâmica narcísicaque ele adjetiva de perversa(BIRMAN, 2000), exatamente porque toma o outro como descartável e, acrescento, busca sustentar a qualquer custo uma consistência no Outro (no caso o Outro talvez pudesse ser pensado cultural e linguisticamente como a metrópole colonial), que gozaria do esforço do próprio sujeito explorador de dar continuidade ao imperativo da empresa colonial.

Hannah Arendt indicou que os totalitarismos nazista e stalinista aplicavam sobre povos em território europeu aquilo que já fora ensaiado e praticado, por exemplo, pela colonização praticada pelo Império Britânico, nos casos estudados por ela, quais sejam, a África do Sul, a Índia e o Egito (1951). Complementando a filósofa alemã, poderíamos nos arriscar a dizer que, se a colonização fundou, no campo político, o modo de gestão que serviu de condição de possibilidade do totalitarismo, no campo econômico, possibilitou o neoliberalismo.

O mundo virou, hoje, uma grande colônia e não há como um psicanalista trabalhar escutando um sujeito se não considerar os modos de subjetivação de nosso tempo, as condições históricas, econômicas e geográficas de subjetivação. Sem levar isso em conta, como escreve Lacan em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953), ele deve declinar deste ofício. O brasileiro é um exemplar muito interessante do sujeito contemporâneo, pois talvez evidencie com mais nitidez o que o capitalismo neoliberal semeia também alhures. (Publicado no blog do autor, 03/12/2023)

***
Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  
Leia também “Quem se importa em conservar a Amazônia“, de João e Janete Capiberibe.