A pandemia reduziu a receita fiscal e elevará os gastos públicos, seja para a proteção social, seja para equipar o setor de saúde, seja para reativar a economia. A fase à frente será de déficit fiscal prolongado.

O Fundo Monetário Internacional tem recomendado elevação de gastos públicos para reanimar a economia. A agressiva política do governo Biden nos mostra que essa é uma questão global. A despeito de os ventos terem se alterado internacionalmente, no Brasil, a ideologia fiscalista persiste. Nosso caso brasileiro, a economia já estava estagnada há alguns anos, ou seja, com variação de receita fiscal débil.

Os fatos provaram que a retórica de que “o dinheiro acabou” era falsa. A crise superou o mito de que o Estado pode falir na própria moeda. De toda forma, o dogmatismo fiscal se mantém no ideário veiculado pelos nossos representantes políticos, pela mídia tradicional e mesmo pelos acadêmicos que não se importam com a falta de realismo da teoria convencional.

A concepção convencional da economia sugeria que o ajuste fiscal seria capaz de aumentar a confiança empresarial, trazendo crescimento econômico. Esse discurso vem desde 2015. O fracasso dos resultados foi justificado com a suposta insuficiência do corte de gastos.

Frente ao insucesso, a glória vindoura seria sempre atingida pela próxima reforma. A emenda constitucional do teto de gastos públicos, a reforma trabalhista, a reforma previdenciária, a emenda emergencial, a reforma administrativa… Entretanto, não houve reação da atividade econômica e o nível de endividamento aumentou devido à retração do PIB. O nível de renda per capita de 2014 deve demorar alguns anos para ser novamente atingido.

Logo no início da pandemia, a desconexão da realidade de Paulo Guedes trazia a fórmula para superar a crise: cortes de gastos e reformas fiscais. Na prática, o tombo de 2020 não foi maior devido ao auxílio emergencial, vale dizer, gasto público. Caso os governos optem por seguir a linha de cortar gastos futuramente, haverá mais retração da demanda agregada, o que aprofundará a crise e o desemprego.

O debate de como pagar a conta não é pouco relevante. Ao contrário do que é propalado por visões ideológicas, o Estado não funciona como o orçamento familiar. Ele emite moeda, tributa, determina os juros, seus gastos afetam o nível de renda e de produção. Assim, essa conta não precisa ser necessariamente “paga”, mas o endividamento tem que ser sustentável ao longo do tempo.

À toda sorte, existem opções de equacionamento, com seus respectivos custos e riscos: i) emissão monetária; ii) endividamento; iii); venda de ativos e; iv) aumento de impostos. Os riscos envolvem inflação, fuga de capitais, majoração de taxas de juros e retração da demanda agregada.

No presente, há fuga de capitais, independentemente da política fiscal. Venda de ativos é a preferência de Paulo Guedes, incluído as reservas em dólares, moedas que não emitimos, o que poderia nos colocar em um quadro de escassez de divisas externas e crise cambial. Já ativos produtivos estão com preços baixos. A elevação de endividamento ocorrerá e se a opção ficar restrita a esse caminho, sua variação será expressiva.

A tributação tem efeitos arrecadatórios e distributivos, além de afetar a dinâmica econômica. Ou seja, impostos não apenas financiam as despesas, mas também afetam a distribuição de renda e a demanda agregada. Cabe destacar que elevação de impostos reduz a renda disponível e, portanto, o nível de consumo e de investimento, ainda que com diferentes níveis de alteração nos distintos estratos sociais.

A mentira de que no Brasil os ricos pagam muito imposto não se sustenta. Propagaram-se estudos demonstrando que nossos ricos estão entre os que menos pagam impostos no mundo. A tributação sobre renda e sobre patrimônio são muito baixas. A carga tributária bruta brasileira está na faixa de 32,4% do PIB, ficando 48,4% sobre bens e serviços; 26,1% na folha de salário e seguridade social; 19,2% em renda, lucro e ganho de capital; 4,5% na propriedade; e 1,6% em transações financeiras.

Para além da discussão sobre o equilíbrio fiscal, o tema da tributação trata de justiça social e estímulo produtivo. Há vasto espaço para tributar a movimentação financeira, a especulação imobiliária, a propriedade rural, a herança recebida, a mobilidade de capital.

No Brasil há isenção de Imposto de Renda (IRPF) para a distribuição de dividendos, enquanto a alíquota média no Reino Unido é de 36,1% e no Chile 25%. Aqui o IRPF possui uma alíquota máxima de 27,5%. Na Suécia, na Alemanha e nos Estados Unidos, a alíquota máxima é de, respectivamente, 56,7%, 45,0% e 39,6%

Outro tributo que efetua justiça fiscal e melhora a distribuição de riqueza é o imposto sobre heranças (ITCDM). A alíquota no Reino Unido é de 40%, na França 32,50%, na Suíça 25,00%; no Japão 24,00%. Em outros países, ela é variável: nos Estados Unidos, a média é de 29%; no Chile, 13%. No Brasil a cobrança de ITCMD varia de acordo com cada estado e é, em média, 3,86%. Os maiores beneficiários de heranças e doações no Brasil são produtores rurais e acionistas de empresas industriais. Em 2017, 2.496 indivíduos receberam, em média, R$ 20,8 milhões em heranças e doações.

Na maior parte dos países, a concentração de renda fica dentre 1% ou menos. No caso do Brasil, a disparidade é acentuada a partir de 0,5% mais ricos e, sobretudo, no 0,1%, faixa essa que declara à Receita Federal possuir, em média, R$ 16 milhões de patrimônio. Mas há segmentações identificáveis nas declarações de IRPF com rendimento médio anual de R$ 29,3 milhões e um patrimônio líquido médio de R$ 83,1 milhões.

No passado, havia quem argumentasse que a tributação sobre os mais ricos diminui a eficiência produtiva e desestimula o trabalho e a produção. Atualmente, conforme apresentado em artigo anterior, os teóricos que tinham tais ideias mudaram suas posições frente à constatação factual de que a redução da tributação sobre os mais ricos ocorrida mundo afora após a década de 1980 não aumentou o crescimento econômico e nem o nível de investimento, apenas concentrou renda em segmentos que necessitam cada vez menos empregar seu trabalho. Tornou-se, portanto, consenso teórico que a tributação tem o papel de reduzir desigualdades e quem defende o contrário não está atualizado nas referências de fronteira científica.

Não é plenamente verdadeira a impressão de que o custo da pandemia terá de ser pago com esforços tributários futuros e com cortes de gastos estatais. Existem outras alternativas. Contudo, parte deste custo pode ser financiado com uma reformulação tributária. A reforma tributária está sempre em pauta, mas pouco anda. Temos muitas alternativas tributárias que podem ajudar do ponto de vista fiscal e também distributivo, tais como: elevação mais progressiva do IRPF, tributação sobre dividendos distribuídos, majoração do ITCDM, tributação sobre a propriedade rural, tributação sobre aplicações financeiras e sobre a movimentação em Bolsa de Valores, ou até mesmo uma tributação temporária sobre o rendimento dos estratos de renda mais elevados.