O Hamas massacrou o Israel laico e de esquerda

O jornalista franco-israelense Charles Enderlin (78 anos) é um grande especialista no conflito entre Israel e a Palestina. Há mais de 50 anos, como cidadão israelense, foi convocado a participar da guerra do Yom Kippur em 1973, um conflito que se compara com a atual guerra de Gaza por suas semelhanças cronológicas – começou no dia 6 de outubro – e porque naquela época o Tsahal (exército israelense) também estava nas cordas. Depois de haver exercido o cargo de diretor do escritório da France Televisión (televisão pública) em Jerusalém durante décadas, este correspondente trabalha agora como ensaísta. Autor de mais de dez livros sobre o interminável conflito no Oriente Médio, publicou recentemente “Israel – a agonia de uma democracia”.
“O fundamentalismo messiânico (judeu) e o fundamentalismo islâmico são aliados objetivos. Ambos se opõem a uma negociação pacífica”, afirma Enderlin na entrevista. Jornalista comprometido, ele se mostra muito crítico do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e não perde a esperança de que, mais cedo ou mais tarde, prevaleçam os defensores da paz em Israel e na Palestina. A entrevista, publicada pela revista Ctxt pouco mais de um mês do ataque terrorista do Hamas, parece escrita junto com o artigo “Os sinais da paz” de Luiz Marquez, publicado no Terapia Politica ontem.

Entrevista de Enric Bonet com o jornalista Charles Enderlin 

Qual é a responsabilidade de Netanyahu nos atentados do Hamas de 7 de outubro e a escalada do conflito palestino-israelense?

O principal responsável pela situação atual é Netanyahu. Depois da sua volta ao poder em 2009, autorizou o financiamento do Hamas. Em março de 2019, deu a seguinte explicação aos deputados do Likud: “Qualquer pessoa que esteja contra a existência de um Estado palestino deve apoiar o fortalecimento do Hamas, a transferência de fundos ao Hamas. Manter uma separação entre a Autoridade Palestina na Cisjordânia e o Hamas em Gaza serve para impedir a criação de um Estado palestino.” Esta posição de Netanyahu foi um dos motivos do reforço militar da organização islâmica.

Que resultou no fracasso militar israelense no dia 7 de outubro…

De acordo com um antigo responsável pelo Shin Bet (serviço de segurança interna de Israel), Netanyahu havia se oposto no passado a operações pontuais para liquidar militarmente os líderes do Hamas. A mensagem que era transmitida às forças de segurança era a seguinte: os dirigentes não consideram o Hamas uma ameaça existencial. Isso distorceu as análises dos serviços de inteligência de Israel. Antes do 7 de outubro, consideravam que o maior perigo não se encontrava em Gaza, mas na Cisjordânia. O Estado-Maior mobilizou suas forças mais importantes para garantir a segurança dos colonos israelenses.

A atual coalizão governamental em Israel reconhece abertamente seus anseios de anexação dos territórios palestinos, o que aumenta ainda mais as tensões na região. Após ter tomado posse no final do ano passado, Netanyahu tuitou as primeiras linhas do compromisso de governo: “O povo judeu tem um direito exclusivo e inalienável à terra de Israel. Meu governo desenvolverá a implantação em todos os lados, incluindo na Judeia-Samaria (Cisjordânia).”

Como Netanyahu e seus ministros levaram a cabo esta política de fortalecimento do Hamas em detrimento da Autoridade Palestina?

O líder do Likud ofereceu aos colonos mais radicais as chaves da colonização e a segurança. Embora Itamar Ben Gvir fosse considerado, até dois anos atrás, um perigoso ativista de extrema direita, atualmente ele é o ministro da Segurança Nacional e o responsável pela polícia. Betzalel Smotrich, chefe de um partido sionista, religioso, homofóbico e racista reconhecido é o ministro das Finanças e ministro adjunto de Defesa. Este cargo lhe permite dirigir a administração civil da Cisjordânia e ele faz uso do cargo para favorecer as colônias, ao mesmo tempo em que prejudica o desenvolvimento palestino. Também pede a dissolução da Autoridade Palestina de Mahmoud Abas. O próprio Smotrich dizia em 2015: “A Autoridade Palestina é um peso, mas o Hamas é uma vantagem real para nós. Ninguém os ouve no cenário internacional. Não podem nos levar diante da Corte Penal Internacional ou apresentar uma denúncia no Conselho de Segurança da ONU, como fez Abas.” No entanto, esta aposta de Netanyahu e Smotrich explodiu na cara deles em 7 de outubro e levou Israel à sua maior crise existencial desde a sua independência, em 1948. E terão que prestar contas disso.

De certa maneira, os sionistas mais nacionalistas e conservadores e os islamistas do Hamas representam faces distintas da mesma moeda (fanatismo religioso, negação do outro e perpetuação do conflito).

Sim, tem razão. O fundamentalismo messiânico sionista e o fundamentalismo islâmico são aliados objetivos. Ambos se opõem a uma solução pacífica do conflito. Os sionistas religiosos negam a existência de um Estado palestino na região que chamam de Terra de Israel, que, segundo eles, Deus ofereceu ao povo judeu, enquanto que o Hamas combate a existência de um Estado judeu na terra do Islã. No dia 25 de fevereiro de 1994, o terrorista judeu Barukh Goldstein assassinou 29 muçulmanos que rezavam na Tumba dos Patriarcas de Hebron. Isso deu um pretexto ao Hamas de desencadear uma campanha de atentados suicidas em Israel. No dia 4 de novembro de 1995, Yigal Amir, um sionista religioso, assassinou o então primeiro-ministro israelense Yitzak Rabin. Desta vez, não me surpreendeu que o Hamas atacasse os kibutzim próximos a Gaza. Seus habitantes são os mais favoráveis a uma solução com dois Estados (o israelense e o palestino), à qual se opõe a organização islamista. Perante os fundamentalistas de ambos os lados, a comunidade internacional não apoia os defensores da paz em Israel e na Palestina. E permitiu que a região se convertesse num lugar infernal.

Netanyahu está enfraquecido por esta crise? Ou esta escalada pode servir para que ele avance em seu projeto de Israel como um Estado judeu que abarque todos os territórios da região?

Sim, está muito enfraquecido. De acordo com todas as pesquisas, o Likud de Netanyahu e seus aliados do sionismo messiânico, provavelmente também os ultra ortodoxos, com certeza perderiam as eleições se elas ocorressem neste momento. Mas novas eleições não estão marcadas para antes de três anos. E o objetivo dos atuais dirigentes é fazer todo o possível para se manter no poder. Netanyahu e seus aliados dispõem atualmente de uma sólida maioria parlamentar, de 64 deputados num total de 120. No momento, seu projeto de estabelecer em Israel um novo regime político iliberal e autocrático está paralisado. Mas isso não impediu que integrantes de sua coalizão aprovassem no Kneset leis antidemocráticas, por exemplo, uma lei para que o governo controle os meios de comunicação.

Qual é a natureza das ações do exército israelense? Trata-se de uma luta contra uma organização terrorista? Crimes de guerra? Ou um massacre com dimensão genocida?

Os bombardeios aéreos em Gaza fazem parte da tática israelense de neutralizar o Hamas. O argumento central de Tel Aviv é que nenhum Estado no mundo pode aceitar a presença em sua fronteira de uma organização capaz de massacrar sua população civil. Por conseguinte, considera que deve fazer todo o possível para que desapareça esta ameaça existencial. Mas esses bombardeios e ações militares em Gaza acontecem em um território com uma das densidades demográficas mais elevadas do mundo. E o exército israelense não considera outra forma de luta contra o Hamas a não ser os bombardeios, o que já fez no passado. Tudo isso provoca consequências humanitárias horríveis para os civis de Gaza.

O exército e os colonos israelenses também estão executando ações na Cisjordânia. Como o conflito atual está afetando a ocupação desse enclave palestino? Os sionistas querem aproveitar isso para completar a Nakba?

Nenhum país árabe aceitará refugiados palestinos expulsos por Israel. E a comunidade internacional não permitirá ao governo de Israel levar a cabo uma nova Nakba (a expulsão de uma parte da população palestina em 1948). Mas o que acontece atualmente na Cisjordânia é a limpeza étnica de um setor bem definido. Colonos armados, acompanhados por soldados israelenses de unidades locais estão expulsando os beduínos de suas terras. Isto tudo acontece por causa da ausência das grandes unidades militares que antes de 7 de outubro mantinham uma ordem aparente. As ONGs israelenses fazem alertas constantes sobre isso e a administração Biden também exigiu que Netanyahu suspendesse essas operações criminosas.

Como o atual conflito afetou o Israel secular e progressista, que se manifestou massivamente entre janeiro e setembro deste ano contra Netanyahu?

Este Israel laico e de esquerda foi exatamente o que o Hamas massacrou no 7 de outubro. Os jovens do festival de música não eram religiosos. Os habitantes dos kibutzim, dos quais uns 20 a 30% morreram ou foram sequestrados, eram de esquerda e participaram de forma massiva das manifestações contra o governo de Netanyahu. Os milicianos islamistas também assassinaram ou sequestraram vários militantes defensores dos direitos humanos. Desde então, o movimento pró-democracia interrompeu suas atividades. Mas não tenho nenhuma dúvida de que regressará às ruas de forma massiva para derrubar o Executivo atual. Seja depois da guerra ou até mesmo antes.

Em seu livro Israel – agonia de uma democracia, ressalta que entre os israelenses que se manifestaram contra a reforma judicial e a tendência iliberal de Israel há “um número não negligenciável de opositores à ocupação dos territórios palestinos”. Este apoio à causa palestina foi enfraquecido?

É muito cedo para responder a esta pergunta. Eu gostaria que não fosse assim. Na realidade, os principais inimigos do movimento pró-democracia são os homofóbicos, racistas e anexionistas, isto é, os sionistas messiânicos do partido kahanista Otsmá Yehudit (Potência Judaica) de Ben Gvir, o herdeiro ideológico do rabino racista Meir Kahana e um dos atuais ministros de Netanyahu.

Como analisa a posição dos líderes europeus e da União Europeia acerca do conflito?

Deveríamos explicar aos líderes europeus, especialmente à Ursula von der Leyen (presidente da Comissão Europeia), que em Israel também há uma esquerda extraparlamentar que deve ser apoiada. Quando os líderes europeus viajam a Israel, deveriam reunir-se não só com Netanyahu, mas também com as ONGs que se opõem à ocupação. Isto significaria uma advertência para o governo israelense.

Quando se observa o conflito, temos a sensação de que Israel paga pelo fato de ser o Estado mimado pelos Estados Unidos no Oriente Médio, ao qual se permitem políticas (ocupação, regime de apartheid…) contrárias ao direito internacional e duramente criticadas no caso em que outros países as executem.

Sim, tem razão. É a consequência da política míope dos Estados Unidos e da Europa. Também levada a cabo com prepotência e com a síndrome de Hubris [transtorno que gera um ego desmedido e desprezo pelas opiniões e necessidades dos demais] pela direita israelense de Netanyahu desde 2009. Tudo isso fez com que Israel sofresse (no 7 de outubro) seu maior fracasso militar desde a sua criação em 1948. Quando superarem o imenso trauma atual, os israelenses entenderão que este caminho só os levará a catástrofes parecidas. Mas o triste é que para chegar a esta conclusão, terão provocado demasiadas mortes de palestinos e israelenses. (Publicado pela Revista Ctxt )

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Tradução e Revisão: Celia Bartone

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