O papel da parceria chinesa na recuperação econômica da Rússia após dois anos da guerra com a Ucrânia

Passados dois anos do início da Operação Militar Especial russa na Ucrânia, pode-se argumentar que nunca foram tão notórias as implicações econômicas deste conflito na comunidade internacional. Em especial nos países ocidentais, na Rússia e, principalmente, na Ucrânia.

Como o advento deste conflito já estava sendo previsto desde a primeira metade da década passada, era de se esperar que o governo de Vladimir Putin adotasse medidas para proteger a economia de seu país das eventuais sanções que estavam por vir, o que foi exatamente o que aconteceu.

Este texto tem por objetivo compreender de que forma o governo russo conseguiu amenizar os efeitos das sanções impostas pelo ocidente e analisar como a Rússia conseguiu registrar um surpreendente crescimento econômico de 3,6% em 2023, uma taxa maior que a registrada pelos países do G7.

Euromaidan e antecedentes da Guerra

Consideradas por muitos como o acontecimento que gestou o atual conflito Rússia-Ucrânia, as manifestações do Euromaidan, que começaram como uma onda de protestos em 2013, foram um marco na crescente tensão entre os dois países. Na esteira da primavera árabe, os manifestantes ucranianos reuniam-se diariamente na praça principal de Kiev, exigindo uma maior aproximação do país com a União Europeia e o bloco ocidental. Além disto, esta série de manifestações também se caracterizou por evocar um sentimento de rejeição à crescente influência russa em solo ucraniano, que era simbolizada pela decisão do presidente Viktor Yanukovych de abandonar um acordo de associação com a União Europeia – que foi o estopim para o início das mobilizações. Este movimento de protesto rapidamente se transformou em uma expressão mais ampla de descontentamento com a corrupção endêmica, a falta de reformas democráticas e a deterioração das condições econômicas. A violenta repressão aos protestos por parte das forças de segurança apenas inflamou a situação, levando a uma escalada de confrontos que culminou na destituição de Yanukovych.

A resposta da Rússia ao Euromaidan e à subsequente mudança de governo na Ucrânia foi rápida e implacável. A anexação da Crimeia em março de 2014 e o apoio a movimentos separatistas no leste da Ucrânia – como os de Donetsk e Lugansk – foram vistos como uma tentativa direta do governo de Vladimir Putin de reafirmar sua influência na região e de desafiar a expansão da esfera de influência ocidental. Por outro lado, a Rússia enxergou o Euromaidan e os eventos que o sucederam – diga-se a eleição de Volodymyr Zelenskyy e o pedido de adesão à Otan, por parte da Ucrânia – como resultado de intervenções políticas de caráter imperialista dos países ocidentais, em especial os Estados Unidos, na zona de influência russa.

Esta sequência de eventos não apenas agravou as relações entre a Rússia e a Ucrânia, mas também entre a Rússia e o Ocidente, o que prepararia o terreno para o conflito armado que se iniciou em fevereiro de 2022.

O advento do conflito e os efeitos iniciais das sanções

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, uma resposta rápida e abrangente da comunidade internacional se materializou na forma de sanções econômicas. Estas sanções visavam, dentre muitas coisas, isolar a Rússia dos mercados financeiros globais e reduzir sua capacidade de financiar o conflito. Entre as medidas mais significativas estavam o congelamento de ativos do fundo soberano russo e a exclusão de bancos russos do sistema de pagamento internacional, conhecido como Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication, ou apenas SWIFT. União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido, Japão e Canadá foram alguns dos que impuseram restrições severas, afetando setores-chave como o financeiro, energético e de transporte. As sanções também incluíram controles de exportação e proibições de financiamento comercial, visando atingir 70% do setor bancário russo e as principais empresas estatais. Além disso, a Alemanha suspendeu a certificação do gasoduto Nord Stream 2, um projeto essencial para as exportações de energia da Rússia para a Europa. É importante destacar que a decisão da Alemanha de interromper o Nord Stream 2 acabou se provando um verdadeiro tiro no pé, uma vez que o mercado energético alemão tornou-se dependente dos gasodutos americanos. Estes, por estarem localizados a uma distância maior da Europa Ocidental, resultaram em custos de serviço mais elevados, o que catapultou os preços da energia na Alemanha e fizeram com que o país registrasse, ao final de 2022, uma taxa média de inflação de 7,9%, a maior dos últimos 70 anos.

Os efeitos imediatos destas sanções foram dramáticos: o rublo despencou para uma baixa recorde, e o índice MOEX, o índice de ações que acompanha o desempenho das 50 principais empresas listadas na Bolsa de Valores de Moscou, fechou em queda de 33%. O país entrou num ciclo inflacionário que atingiu seu pico em abril de 2022, com uma taxa de 17,8%. A capacidade de Moscou de defender a soberania de sua moeda havia sido drasticamente limitada. A exclusão do SWIFT e o congelamento das reservas cambiais do Banco Central da Rússia, estimadas em cerca de 324 bilhões de dólares, restringiram ainda mais a capacidade da Rússia de realizar transações financeiras internacionais. A longo prazo, as sanções tiveram o objetivo de enfraquecer a economia russa e sua base industrial. A proibição da comercialização de produtos derivados do petróleo russo e a redução das importações de gás russo pela União Europeia visavam cortar uma fonte vital de receita para o governo russo. A imposição de um teto para o preço do petróleo buscou limitar ainda mais os ganhos da Rússia com suas exportações de energia.

No entanto, apesar dos massivos esforços do bloco ocidental para sufocar a economia russa, a mesma demonstrou impressionante resiliência ao registrar uma retração de apenas 2,8% em seu Produto Interno Bruto no ano de 2022, um resultado satisfatório, ainda mais se levarmos em conta que a queda prevista pelos economistas era de 12,4%. Além do mais, a alta nos preços globais do petróleo e do gás, em parte devido ao próprio conflito, permitiu que a Rússia redirecionasse suas exportações para outros mercados, como China e Índia, e até mesmo o Brasil, diminuindo o impacto das sanções ocidentais e garantindo sobrevida para a balança comercial russa e para a administração de Putin. Este foi reeleito para um 6° mandato com 88% das intenções de voto no último domingo.

Além disso, o rublo russo, de forma surpreendente, se tornou uma das moedas mais valorizadas em relação ao dólar. Contrariando todas as expectativas, apenas dois meses depois de seu valor ter caído consideravelmente para menos de um centavo do dólar americano, a moeda deu início a um notável processo de recuperação. Em 7 de março de 2022, o rublo atingiu a mínima histórica de 0,007 rublos por dólar. No entanto, desde então a moeda russa se valorizou em aproximadamente 15% em relação à moeda americana e, em julho do mesmo ano, já estava sendo negociada em torno de 0,016.

Acredita-se que esta recuperação inesperada do rublo tenha origem nos rígidos controles de capital impostos pelo Kremlin logo após o começo do conflito. Estes controles provocaram filas de pessoas nos caixas eletrônicos em busca de dólares, o que fez com que a administração de Putin instituísse, a partir de março de 2022, a proibição da venda de rublos para a compra de moedas estrangeiras.

Além disso, o banco central russo aumentou drasticamente as taxas de juros para 20% e decretou que os exportadores russos deveriam converter 80% de sua renda externa para a moeda local.

Resposta estratégica da Rússia

Seguindo esta linha de proteção da economia nacional, o país aproveitou as sanções como uma oportunidade para buscar a autossuficiência em várias indústrias. O governo incentivou o desenvolvimento de setores internos, como a agricultura e a tecnologia, reduzindo a dependência de importações. Essa mudança para a autossuficiência foi acompanhada de um aumento nos subsídios a empresas locais e na promoção de inovações tecnológicas nacionais.

Uma das principais políticas internas adotadas pela Rússia foi a adoção de medidas visando reduzir a dependência do dólar americano em sua economia. Ao analisarmos algumas das principais movimentações econômicas russas nos últimos anos, podemos chegar à conclusão de que esta política se manifestou de diversas formas. Evidência disto é que, durante os anos que antecederam o início do conflito na Ucrânia, o governo russo buscou expandir suas reservas de ouro como parte de uma política mais ampla de desdolarização. O objetivo era reduzir a dependência do dólar americano e se proteger contra possíveis sanções econômicas. Bancos centrais ao redor do mundo, em especial o da Rússia, começaram a comprar ouro em volumes significativos. Os russos, em particular, foram um dos maiores compradores de ouro nos anos que precederam a crise, aumentando suas reservas para reforçar sua economia contra as restrições impostas pelo Ocidente. Estima-se que, durante o 4° trimestre de 2023, as reservas de ouro da Rússia fossem de aproximadamente 2.332,74 toneladas, sendo a 6ª maior do mundo e, em termos monetários, eram avaliadas em cerca de US$ 140 bilhões, o que equivale a aproximadamente R$ 703 bilhões. Além disso, esta política de desdolarização também incluiu o aumento do uso da moeda chinesa, o renminbi, nos meios de pagamentos, refletindo uma forte aproximação com a República Popular da China.

Esta aproximação fica evidenciada em uma das primeiras medidas adotadas pela Rússia após ser banida do SWIFT: a adesão ao Sistema de Pagamentos Interbancários da China (CIPS), que permite a realização de transações transfronteiriças em renminbi. Esta medida representou um passo significativo na redução da dependência do sistema financeiro ocidental e do dólar americano.

Ademais, houve também um aumento no uso do renminbi em transações comerciais e financeiras. Instituições financeiras russas começaram a emitir títulos denominados em renminbi e a estabelecer linhas de crédito com bancos chineses. Essa mudança não apenas fortaleceu os laços econômicos entre Rússia e China, mas também promoveu a internacionalização da moeda chinesa.

A diversificação de parceiros comerciais também foi uma estratégia chave para a Rússia, visto que, após as sanções, houve um esforço significativo para estreitar laços comerciais e econômicos com países não ocidentais, particularmente na Ásia. A China emergiu como um parceiro comercial vital, com o comércio bilateral atingindo o nível recorde de US$190 bilhões em 2022, representando um aumento de 29,3% em relação ao ano anterior. Projetos de longo prazo, como a construção do gasoduto Sibéria 2, foram acordados para expandir a infraestrutura de exportação de energia da Rússia para a China. A cooperação econômica sino-russa, que já tinha sido um pilar para a sustentação da economia russa durante os primeiros anos do período pós-soviético, também se mostrou fundamental para a resistência da economia russa às sanções ocidentais. Os dois países assinaram acordos para aumentar a cooperação estratégica até 2030, incluindo o aumento da venda de commodities russas para a China. Esta parceria estratégica é vista como crucial para o Kremlin, pois permite o acesso a um mercado amplo e crescente, além de garantir apoio político diante da comunidade internacional. (Publicado na Conexão SinoLatina mar/2024)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
Leia também “A violência na Rússia de Andrei Rublev“, de Halley Margon.