Muito já se falou sobre a experiência pessoal da doença e suas narrativas, assim como de seus impactos subjetivos. No entanto, é igualmente importante considerar uma outra dimensão da doença: os efeitos familiares e sociais que ela impõe. A doença não afeta apenas o indivíduo, mas também suas relações sociais, seu papel na família e na comunidade, e até mesmo a estrutura e funcionamento das instituições sociais.

A enfermidade é uma experiência multidimensional que transcende o indivíduo, influenciando e sendo influenciada por fatores sociais, culturais e institucionais. Narrativas coletivas mostram como estas podem variar em diferentes culturas e épocas, refletindo as crenças, valores e experiências compartilhadas da sociedade. Em artigo publicado anteriormente “As narrativas sobre a Covid-19: conceitos e significadosmencionei a epidemiologia das metáforas, das representações, das dimensões simbólicas, com dualismos e oportunismos políticos. As narrativas coletivas sobre a doença também são cruciais. Histórias compartilhadas podem servir como um meio de educação, prevenção e conscientização, moldando a percepção pública e a resposta social à doença. Elas podem ser encontradas em diversos meios, desde relatos de pacientes em redes sociais até em representações na literatura e no cinema.

Tendo como fonte matérias publicadas pela Fiocruz, comento a seguir algumas narrativas coletivas (e suas representações) sobre epidemias ao longo da história.

A Peste Negra na Europa Medieval devastou países, matando uma grande parte da população. Ela foi descrita na época como um castigo divino, levando muitos indivíduos à autoflagelação para expiar os pecados. O aspecto religioso frequentemente estava presente. Ela era denominada como “negra” por causar gangrena em certas partes do corpo. Hoje sabemos que é uma doença infecciosa aguda, transmitida principalmente por picada de pulga infectada, e se manifesta sob três formas clínicas principais: bubônica, septicêmica e pneumônica. A doença ainda é um perigo potencial para as populações, devido à persistência da infecção em roedores silvestres. A obra “A Peste”, de Albert Camus, publicada em 1947, narra a história de uma epidemia de peste que assola a cidade argelina de Orã. Camus explora temas como a solidariedade, a resistência humana e a absurda luta contra uma força implacável.  De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os três países onde a doença ocorre de maneira recorrente são a República Democrática do Congo, Madagascar e o Peru. Mas não somente nesses locais. Em Paris há uma preocupação com a proliferação de ratos, sempre com a justificativa de descuido com o lixo orgânico. E para os Jogos Olímpicos de 2024, as autoridades adotaram medidas exclusivas para que os turistas não encontrem esses roedores durante o evento, evitando constrangimentos. Além disso, a vice-prefeita Anne-Claire Boux, que é responsável pela saúde pública, contratou uma equipe especial para realizar uma limpeza profunda e estratégica para impedir que esses animais apareçam nos locais olímpicos e nas áreas de comemoração.

A Gripe Espanhola de 1918 (uma mutação particularmente letal do vírus H1N1, vírus da Influenza, como conhecemos hoje) foi uma pandemia devastadora que afetou o mundo inteiro, infectando aproximadamente um terço da população global e resultando em cerca de 100 milhões de mortes. Ocorrida no final da Primeira Guerra Mundial, sua rápida propagação foi facilitada pelo movimento de tropas. A falta de conhecimento científico sobre a gripe levou à disseminação de boatos, e a desinformação afetou decisões políticas e militares. Nos jornais multiplicavam-se receitas para tratamento e cura. Cartas enviadas por leitores recomendavam pitadas de tabaco e queima de alfazema ou incenso para evitar o contágio e desinfetar o ar. Com o avanço da pandemia, sal de quinino, remédio usado no tratamento da malária e muito popular na época, passou a ser distribuído à população, mesmo sem qualquer comprovação científica de sua eficiência contra o vírus da gripe. Histórias e memórias dessa época frequentemente descrevem a luta das famílias para cuidar dos doentes em um momento de grande escassez de recursos. As narrativas também destacam a solidariedade comunitária apesar do medo, das perdas e da luta pela sobrevivência. O livro “A Bailarina da Morte – A Gripe Espanhola no Brasil”, lançado em 2020, das autoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling, traz um contundente retrato do Brasil durante essa pandemia, doença mortal que assombrou a humanidade, revelando trágicas semelhanças com a covid-19. Ela paralisou a economia e instigou disputas políticas e atitudes negacionistas de médicos e governantes. Atualmente, o Ministério da Saúde lança anualmente a Campanha Nacional de Vacinação, com a meta de vacinar pelo menos 90% do grupo prioritário, pois para essas pessoas as chances de complicações como consequência da infecção pelo vírus da gripe são muito mais frequentes.

A Tuberculose, no século XIX e início do século XX, era uma doença muito comum e quase sempre mortal. Narrativas coletivas desse período frequentemente romantizavam a doença, ligando-a à ideia de sensibilidade e criatividade, como visto em muitos escritores e artistas que sofreram com a tuberculose. O tratamento higieno-dietético prevaleceu como terapêutica. Acreditava-se que a cura do doente acontecia quando se dispunha de boa alimentação, repouso e clima das montanhas. Em consequência, houve a criação de estabelecimentos sanitários especializados para o tratamento e a cura desta endemia crônica. É uma doença transmitida por uma bactéria (bacilo), pelo ar (tosse e espirro de pessoas infectadas), e embora afete principalmente os pulmões, pode também atingir outros órgãos.  A forma pulmonar, além de ser mais frequente, é a principal responsável pela manutenção da cadeia de transmissão. O livro “A Montanha Mágica” de Thomas Mann, romance situado em um sanatório de tuberculose nos Alpes Suíços, explora a doença como uma metáfora para o estado espiritual e intelectual da Europa pré Primeira Guerra Mundial, abordando temas como o tempo, a morte e a decadência. Apesar de ser uma enfermidade antiga, a tuberculose continua sendo um importante problema de saúde pública. O tratamento da tuberculose dura no mínimo seis meses, é gratuito e está disponível no SUS – Sistema Único de Saúde. A doença tem cura quando o tratamento é feito de forma adequada, até o final. É preciso contar com a adesão ao tratamento.

O Combate à Varíola em 1904 no Rio de Janeiro foi palco da maior revolta urbana já vista na cidade – a chamada REVOLTA DA VACINA. Naquele ano, uma epidemia de varíola atingiu o Rio de Janeiro, capital federal, com cerca de 3.500 pessoas mortas na cidade vítimas da doença, chegando a 1.800 o número de internações pela enfermidade apenas em um dos hospitais cariocas, o Hospital São Sebastião. A vacina antivariólica já havia sido desenvolvida e era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, conforme o Código de Posturas do Município. No entanto, a regra não era cumprida porque a produção de vacinas era pequena, tendo alcançado escala comercial apenas em 1884. O imunizante também não era bem aceito pelo povo, e diferentes boatos corriam na época, como o de quem se vacinava ganhava feições bovinas. Mas havia também um complexo e polêmico panorama social e político por trás da revolta. O estopim da rebelião foi uma lei que determinava a obrigatoriedade de vacinação. A população não aceitava ter a casa invadida para ser vacinada e havia uma forte discussão sobre o direito do Estado em mandar no corpo do cidadão. O filme “Sonhos Tropicais”, de 2002, retrata os esforços de Oswaldo Cruz na tentativa de conter a epidemia no país, mostrando a revolta manifestada entre a população. Desde seu último caso registrado, em 26 de outubro de 1977, na Somália, encontra-se erradicada no mundo. Em 1980, após a interrupção de sua circulação viral, a vacinação foi interrompida, exceto em trabalhadores de laboratório que manipulam o agente em pesquisas. Oficialmente, apenas dois laboratórios conservam estoques do vírus: um nos Estados Unidos da América e outro na Rússia. Contudo, apresenta-se como potencial ameaça contra todos os países, principalmente pela possibilidade de seu uso em atos terroristas.

A Epidemia de HIV/AIDS nos anos 80 e 90 trouxe uma carga de preconceitos e dúvidas a respeito da doença, ainda desconhecida na época de seu surgimento. Um rótulo incorreto e prejudicial à ciência foi responsável por estigmatizá-la como uma doença gay, já que os primeiros casos divulgados surgiram nessa comunidade, no formato de um surto. A AIDS era vista como um castigo, um estigma de fundo moral e religioso, por ter como uma das formas de transmissão a via sexual. Entretanto, em 1982 houve relato de casos entre hemofílicos, o que indicava que a doença era transmitida pelo sangue. Mas, até então, não se fazia ideia do que estava em curso, e que logo se alastraria de forma devastadora, provocando uma epidemia mundial. O vírus já circula há 40 anos, e um longo caminho percorrido pela ciência até aqui trouxe avanços que permitem o tratamento como uma condição crônica. O filme “Filadélfia” (Philadelphia), de 1993, aborda o tema do HIV/AIDS e a discriminação enfrentada por pessoas vivendo com a doença. Retrata a história de um advogado que é demitido sumariamente após a descoberta de ser portador do vírus. É um marco na representação da epidemia e na luta por direitos iguais. Recentemente, houve o registro do falecimento da Dra. Lair Guerra de Macedo Rodrigues, aos 81 anos, pioneira na construção de políticas públicas no Brasil para o enfrentamento da AIDS, o que lhe rendeu  a indicação ao Prêmio Nobel da Paz por tornar o programa brasileiro exemplo para o mundo.

Trazendo um debate contemporâneo, tivemos a Pandemia de Covid-19, cujo vírus foi notificado inicialmente em dezembro de 2019 com similaridade ao vírus da influenza. Causador de sério agravamento nos sintomas, logo foi identificado como sendo da “família corona”, disseminando-se de forma agressiva e inimaginável. Durante o percurso da doença, tivemos narrativas com jogos argumentativos em detrimento das evidências científicas. O governante do país chegou a citar como efeito colateral da vacina a transformação em jacaré.  Em contrapartida, a sociedade, de modo geral, respondeu com atitudes proativas: uso de máscara, higienização, isolamento social, apesar das mudanças drásticas nas suas rotinas. Os profissionais de saúde foram excepcionais na abordagem humanista e inclusiva, compartilhando dos sofrimentos alheios e colocando em risco sua própria integridade física por conta da altíssima probabilidade de contágio e evidente exaustão física e mental. Houve o desafio da adaptação a novas formas de trabalho e educação (não presencial), a crise nos sistemas de saúde e a importância da solidariedade e do apoio mútuo. Reproduzo a seguir o trecho de uma crônica do escritor Luís Fernando Veríssimo, de 28/05/2020, no jornal OGlobo, que retrata o período de forma metafórica e poética: “Andei caindo, ou caí andando. Cara no chão, joelhos esfolados, mas nada grave. Uma das simpáticas enfermeiras que me atenderam na emergência do hospital se chamava Verlaine. Só vi os seus olhos, por cima da máscara. Um dos efeitos colaterais dessa maldita pandemia é que nos obrigou a migrar, de uma civilização de rostos inteiros para uma civilização só de olhos. Os rostos perderam os recursos de comunicação que tinham, como o beicinho e o muxoxo e, principalmente, o sorriso. Agora os olhos precisam fazer trabalho dobrado, o trabalho de um rosto inteiro. A máscara nos roubou o rosto. Não posso dizer nada sobre o sorriso da Verlaine. Mas foi diferente ser atendido por uma enfermeira com nome de poeta.”

Constata-se que os elementos comuns nas narrativas coletivas sobre doença são medo, incerteza, estigma, discriminação, mas ao mesmo tempo resiliência e esperança. As representações das enfermidades na literatura, cinema e arte não apenas refletem as preocupações e desafios de suas épocas, mas também moldam a forma como compreendemos e respondemos à doença em um nível pessoal e coletivo. Elas oferecem uma lente poderosa para examinar a saúde, a sociedade e a própria condição humana. Nesse quadro, não se pode deixar de destacar o espaço e o papel das igrejas/religiões como indutoras e modeladoras das narrativas coletivas sobre as mentes de seus seguidores, em muitos momentos contrapondo-se à ciência e ao papel do Estado no enfrentamento das epidemias, remetendo – como antes descrito – a fatores e causas sobrenaturais, a estigmas morais e comportamentais, e ao misticismo como caminho da salvação e cura para proteger seu rebanho. Mais raramente, na direção inversa e em casos pontuais, como coadjuvante positiva da ação social de parceria com a ciência e as ações de saúde pública. Desta forma, as relações, com alinhamentos ou oposições entre Igreja e Estado, podem ser mais ou menos danosas às disseminações de narrativas, estigmas e enfrentamentos científicos.

Durante as epidemias, a sociedade tem expectativas claras em relação aos governantes, esperando ações e comportamentos protetivos que minimizem os impactos sociais e econômicos. Espera-se transparência e comunicação clara, com a divulgação regular de informações precisas sobre a situação da epidemia, incluindo dados epidemiológicos e medidas de controle. A população precisa entender as ações tomadas e as razões por trás delas. A liderança e a tomada de decisões rápidas são cruciais. A prevenção e preparação para o futuro são fundamentais. Investir em pesquisas para o desenvolvimento de vacinas e tratamentos, bem como fortalecer a infraestrutura de saúde pública para responder melhor a futuras emergências, são ações esperadas. A colaboração com instituições científicas e internacionais também é vital, trabalhando em conjunto com cientistas, profissionais de saúde e organizações internacionais para desenvolver e implementar estratégias eficazes, compartilhando informações e recursos com outros países.

Não se pode deixar de apontar, nesse cenário, a introdução dos programas de Inteligência Artificial – IA nos campos da saúde em geral, e da saúde pública em especial. Maior rapidez de prognósticos e de respostas; de mapeamento das trajetórias e vetores de disseminação dos vírus e doenças transmissíveis; tecnologias para criação e produção de vacinas em escala e, portanto, melhor enfrentamento desses cenários com base tecnológica e científica. Se, como mencionei no início, as narrativas coletivas podem variar em diferentes culturas e épocas, refletindo as crenças, valores e experiências compartilhadas da sociedade, tais avanços serão capazes de evitar ou minimizar os efeitos familiares e sociais que as doenças tenderiam a impor?

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone
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