Equalizando nosso conhecimento sobre a tragédia sanitária que estamos vivenciando no momento, relembro que quando em 31 de dezembro de 2019 a China notificou a OMS – Organização Mundial de Saúde sobre um novo vírus, o mundo não podia imaginar os desdobramentos que estavam por vir. O primeiro alerta reportava a uma série de casos de pneumonias com similaridade aos sintomas do vírus influenza. Entretanto logo foi identificado tratar-se de um vírus da “família corona” o causador das doenças, até então circunscrita geograficamente. Já eram conhecidos alguns coronavírus letais e raros, tendo havido o enfrentamento da SARS (Sars-CoV-1) e da MERS (em português, respectivamente, Síndrome Respiratória Aguda Grave e Síndrome Respiratória do Oriente Médio). Ambas síndromes foram contidas por ações sanitárias resolutivas. Outros tipos de coronavírus, com evoluções menos graves, provavelmente se enquadrariam no tão comum e cotidiano diagnóstico médico de “virose”. Eis que surge a Covid-19 (Sars-CoV-2), o sétimo coronavírus segundo os pesquisadores, com muitos casos leves ou assintomáticos, mas demandando em determinada população considerada de risco terapia intensiva, com sério agravamento de sintomas, sofrimento e letalidade, e com uma disseminação agressiva, inimaginável. Os sistemas de saúde não estavam preparados para esse “tsunami”, especialmente em cidades densamente povoadas.

Em 11 de março de 2020, o diretor geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou estarmos diante de uma pandemia de um novo coronavírus, em razão da disseminação geográfica rápida apresentada. Sendo este o pior dos cenários, com extensão a níveis mundiais, a população foi tendo que se adaptar a um novo estilo de vida, recomendado pelos especialistas da área da saúde e governantes, e a se apropriar de termos epidemiológicos tais como “transmissão local”, “transmissão comunitária”, “isolamento horizontal”, “isolamento vertical”, enquanto os casos iam sendo confirmados numa enorme cadeia de contágio.

Pensando sobre as terminologias para as estratégias sanitárias, resgatei um artigo recente de Naomar de Almeida Filho, professor titular de Epidemiologia da UFBA e vice-presidente da ABRASCO, no qual revelou sua estranheza sobre os opostos simétricos “isolamentos horizontal e vertical” que se referem a distanciamento físico como estratégia para a redução do contágio, isolando ou não grupos mais vulneráveis. O autor afirmou que em quatro décadas de carreira acadêmica nunca soube da existência de qualquer conceito epidemiológico dessa natureza. A partir desses novos termos a sociedade vem acompanhando um conflito de significados e oportunismo político entre aqueles que deveriam focar na contenção do avanço do vírus, interferindo nas estratégias de combate sanitário. E eis que, para completar a confusão, um ministro da alta corte do Judiciário decide fazer uma mediação política para resolver a questão propondo um “isolamento diagonal”(1). Seriam fraudes teóricas? Ideologia ou semântica? E numa avalanche de opiniões e certezas, nos vemos num dilema entre dar crédito à ciência, propriamente dita, ou a acreditar em formulações que parecem ser científicas.

Luis David Castiel, médico sanitarista e doutor em Saúde Pública da Fiocruz, em sua recente escritura (como ele mesmo nomeia), de forma bastante sagaz traz os aspectos alegóricos relacionados à pandemia (embora como ele mesmo diz, não há nada de pitoresco numa pandemia!). Em seu “Ensaio sobre a Pandemência”, o qual recomendo a leitura, Castiel aponta que os coronavírus são compostos por uma tira de RNA (ácido ribonucleico, importante na codificação genética), cercada por uma membrana cravejada de “espinhos”, imagem já vista exaustivamente na mídia, e até em charges. O que chama atenção é a metáfora implícita: corona=coroa em latim, numa referência à coroa de espinhos, que leva a pensar em crucificação, martírio, imagens do Cristianismo. Ou seja, seria a Covid-19 uma “coroa de espinhos” a ser carregada pela sociedade? E como resultado de tais sofrimentos teríamos no futuro impactos positivos ou uma nova normalidade? A humanidade estaria se redimindo de suas atitudes insensatas? A baixa atividade humana do momento estaria melhorando a qualidade do ar e das águas? As diversas mídias, com inesgotável alcance e repetições de roteiros têm feito relatos de fenômenos de “limpeza” consequentes ao redor do mundo, criando expectativas de que sim, podemos esperar pelo “novo” mundo.

Uma outra expressão que vem sendo utilizada – a “imunidade de rebanho”- foi retirada da epidemiologia veterinária, e apropriada pelos infectologistas em referência aos benefícios das vacinas também recebidos por pessoas que não as tomaram. Ou seja, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas se vacinou contra uma certa doença. Na história da saúde pública, a varíola, doença infecciosa, altamente contagiosa é o exemplo clássico.

Um pouco da história: em 1796 o médico britânico Edward Jenner observou que as mulheres que retiravam leite das vacas não contraíam a doença, e acabou descobrindo que essa imunidade se devia à infecção não perigosa com cowpox (varíola bovina). Ele propagou a prática de usar a cowpox para a inoculação prévia do vírus em humanos, tornando-os imunes, descobrindo assim a vacina contra a varíola. Em tempo: vaccinia, em latim, varíola bovina, decorrente de vacca. O vírus foi erradicado em todo o mundo em 1980 (certificação da OMS), após vacinação em massa da população mundial, provocando uma resposta imunitária vigorosa. Um parênteses: a doença varíola voltou às manchetes de jornal em virtude da suposição de que ela possa ser utilizada como arma biológica. O vírus hoje é guardado em dois centros governamentais, bem vigiados (esperamos que sim!). São eles, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Atlanta, EUA, e pelo Instituto Vector em Koltsovo, Rússia, decisão tomada em 2002 no encontro anual da OMS pelos países membros, para que as amostras não fossem destruídas por conta do risco de uma epidemia artificialmente gerada por extremistas.

Voltando ao nosso escopo, como esse método citado acima se traduziu para nosso governante e seus auxiliares? Não temos vacina, então vamos forçar a imunidade pelo contágio. Vamos forçar o adoecimento em massa. Vamos desenvolver anticorpos infectando os seres humanos, o “rebanho”. Eles concluíram que quanto maior o número de infectados, mais pessoas estariam resistentes ao vírus devido à memória imunológica adquirida. A tese é de que se a infecção é disseminada por grande parte da população, chega o momento em que a doença vai desaparecer. Mas seres humanos não são rebanhos. Isso é uma necropolítica, pois não leva em consideração o sofrimento das pessoas na equação, e nem as muitas mortes resultantes.

O que estamos tentando apontar é o fato de estarmos diante de uma epidemiologia das metáforas, das representações, das dimensões simbólicas, com dualismos e oportunismos políticos. Essa epidemia da informação faz lembrar a pandemia de HIV/AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida antes das medicações, tratamentos e pesquisas científicas, quando houve também uma proliferação de sentidos atribuídos à origem do vírus e ao contágio. A AIDS era vista como um castigo, um estigma de fundo moral e religioso, por ter como uma das formas de transmissão a via sexual. E nesse caso houve também a politização da doença. Um exemplo histórico foi o fato do presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, em 1998, negar publicamente que o vírus HIV era o causador da AIDS, indo contra a comunidade científica, e impedindo a distribuição de medicamentos antirretrovirais na rede pública, alegando o custo alto dos medicamentos e prejuízos à saúde. Ele indicava oficialmente para o tratamento e combate à doença o medicamento Virodene (composto baseado num solvente industrial), também uma terapia musical e o uso do gengibre.

Necrofilia? Que tal a semelhança com governantes que prescrevem medicamentos tidos como promissores, mas inseguros e ineficazes para a Covid-19? Donald Trump, presidente dos EUA, em menção pública anunciou recentemente que toma hidroxicloroquina para evitar o coronavírus, mesmo sem a eficácia comprovada. Jair Bolsonaro, governante do Brasil, seguindo esse exemplo nefasto, insiste em novo protocolo do Ministério da Saúde usando esse medicamento para o tratamento, refutando argumentos da comunidade científica. Dois ministros da Saúde já foram enquadrados e demitidos por discordância desses procedimentos.

Para tentar compreender o jogo dos discursos argumentativos precisamos refletir sobre alguns verbos: persuadir, inquietar, convencer. A circulação de repertórios sobre as políticas implementadas nesse momento de pandemia vai além da pauta informativa, e tomam sentidos intencionais, convertendo o cotidiano em eventos noticiosos, equivalendo a uma espetacularização da vida e da morte. Nesse momento de confinamento social, temos inúmeras lives com políticos, acadêmicos, escritores, artistas, médicos, sanitaristas, muitas vezes com preocupação de adesão às suas ideias em detrimento às evidências científicas. Todo cuidado é pouco! Há a tentativa do exercício de persuasão por meio do discurso, com a proposta de modificar não só convicções, mas também as atitudes. Estamos diante de uma epidemia de significados na qual a sociedade pode incorporar e formular uma pseudociência. Essa proliferação de sentidos também tem como origem a internet, que rapidamente descentraliza e produz um vasto material com ou sem evidências científicas.

Essas reflexões sobre as narrativas da doença, bastante resumidas dada a importância do tema, e meramente ilustrativas, trazem de volta a discussão sobre as estratégias sanitárias recomendadas e induzidas. Uma delas, a “quarentena”, também é uma apropriação de um termo que data dos séculos XIV e XV, tendo sido inspirado no “trentino”, período de 30 dias imposto pela primeira vez em 1337 na Itália para restringir a liberdade das pessoas durante o período de transmissibilidade de uma doença. A prática de isolamento por 40 dias em barcos segue até hoje como prevenção ao contágio de doenças, com respaldo na legislação sanitária. Mas se estamos falando da apropriação de palavras, esse também é um bom exemplo, já que no caso da Covid-19, a quarentena – 40 dias – quer dizer, na prática, 14 dias em isolamento domiciliar.

Há recomendações de abrangência mundial resumidas em alguns pilares, as quais cito algumas: medidas de distanciamento social para diminuir a transmissão e desafogar o sistema público de saúde; preparação dos serviços de saúde com insumos e logística adequados à situação; testagem em massa; práticas de higienização individual e medidas de compensação social e econômica.

E aí chegamos no uso compulsório da máscara como um efeito colateral da pandemia, já que é uma das formas para que se evite a transmissão pessoa a pessoa por gotículas de saliva contaminadas. Tornou-se um símbolo da doença. Luis Fernando Veríssimo, escritor, desenvolveu num artigo esse tema. Ele fala que mudamos de uma civilização de rostos inteiros para uma civilização só de olhos. E vai mais fundo quando afirma que a máscara nos roubou o rosto e os recursos de comunicação, principalmente o sorriso. Isso me reportou a um documentário de 2001 chamado “Janela da Alma” dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, cujo título alude à frase de Leonardo da Vinci: “o olho é a janela da alma, o espelho do mundo”. Nessa obra várias pessoas fazem revelações pessoais e inesperadas sobre alguns aspectos relativos à visão e sobre o significado do olhar como elemento revelador das emoções. É uma obra cinematográfica de expressões humanas sobre o olhar. Estaríamos vivendo esse momento? O olho no olho? Será que o mundo pós-pandemia será diferente? Novas formas de “enxergar” o outro com suas subjetividades?

Considerando o pressuposto de que temos ainda um longo percurso da pandemia, acredito ser esse o momento de nos colocarmos frente às questões da saúde no Brasil. Mesmo com progressos e retrocessos, o SUS – Sistema Único de Saúde tem sido extremamente vantajoso por ter seus princípios e diretrizes fundamentados na Constituição Federal de 1988, a qual estabeleceu novos atributos ao Estado com relação à sociedade. Considero muito relevantes as propostas tecno-assistenciais: universalidade, igualdade, equidade e integralidade. Temos as ferramentas legais para que a população seja atendida de forma ampla e gratuita. A isso chamamos de saúde pública, termo desgastado no país pela precarização dos serviços, mas que abarca um sistema modelar. No momento em que encerro esse texto foram confirmados oficialmente no país 560.737 casos do novo coronavírus (Sars-CoV-2), com o registro de 31.417 mortes. E a curva ainda segue ascendente. Aguardamos as boas notícias quanto ao sucesso das pesquisas para possíveis tratamentos e vacina. Enquanto isso, seguiremos usando máscaras.

(1) https://www.abrasco.org.br/site/noticias/opiniao/o-isolamento-vertical-defendido-por-bolsonaro-e-uma-fraude-pseudo cientifica-artigo-de-naomar-de-almeida-filho/48549///