O xadrez da História Econômica e da Geopolítica costuma ser mais complexo do que o jogo de xadrez, ele mesmo. Essa diferença é fácil de entender, pois as peças do xadrez, embora possam ter movimentos sofisticados, surpreendentes e combinações infinitas, são sempre as mesmas.
No tabuleiro de movimentos e ambições da Geopolítica não há peças com movimentos pré-definidos. Ao contrário, as peças se fortalecem e acumulam forças gerando novos movimentos liberados das regras anteriores, gerando desdobramentos inesperados. Não vamos falar da quebra do padrão dólar-ouro (governo Nixon em 1971) que detonou os acordos de Bretton Woods, nem de Trump e seu tarifaço, virando o disco da globalização e forçando a desglobalização em nossos dias. Aqui navegaremos seguindo os passos de Portugal, tendo como mote o 25 de abril.
Portugal é uma nação ibérica como a Galiza, a Catalunha ou o País Basco. Mas, ao contrário destas nações, despregou-se de Castela, sendo essa a sua certidão de nascimento. O Estado português, assim como suas fronteiras, é dos mais antigos do mundo, somando já 800 anos. A formação precoce do Estado nacional, com sua localização geográfica a sudoeste do continente, ponto mais ocidental da Europa, quase encostado na África e destino de movimentos migratórios de celtas, fenícios, mouros, judeus e visigodos, coincidiu com o momento em que o eixo da riqueza e do poder se deslocava do Mediterrâneo para o Atlântico. Só para lembrar: as capitais mais próximas de Lisboa são Madri e Rabat, praticamente empatadas nessa distância.
Essa tarefa de avançar sobre o oceano em várias direções criando feitorias, resultou num império colonial que fixou possessões na África, América, Índia e China. A glória e a riqueza das navegações e suas razões ocultas, denunciadas pelo Velho do Restelo nos Lusíadas, duraram pouco. No Brasil, o ouro tardou em ser encontrado e a passagem para um modo de produção tecnologicamente específico urbano/industrial, mais ainda. O fato é que Portugal, que até então nunca tinha tido um projeto europeu, encolheu-se numa situação periférica, subordinado à Inglaterra. Mas, na primeira década do século XIX, como na música “Eu e a brisa” de Johnny Alf, o inesperado fez uma surpresa de dimensões continentais – as guerras napoleônicas. Diante da invasão da Península Ibérica, a corte portuguesa mudou-se literalmente para o Sul do Hemisfério. Foi um evento único na história mundial, onde a sede de um império colonial mudou de hemisfério e levou consigo pelo menos 15 mil pessoas para a mui leal e heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Napoleão foi derrotado e veio o Congresso de Viena. Nessa altura, o Brasil foi promovido a Reino Unido a Portugal e Algarves (e assim permanecerá até 1822), muito em função da vontade de D. João VI em permanecer no Brasil. Aliás, a família real e a corte não demonstravam vontade de retornar para o velho continente. A turbulência sucessória nesse período foi tamanha, que acabou resultando numa guerra civil, conhecida também como Guerras Liberais, Guerra Miguelista ou Guerra dos Dois Irmãos entre 1832 e 1834. Não foi somente uma questão sucessória, mas também disputa entre liberais constitucionalistas e os tradicionalistas. Uma singularidade foi que de um lado estava Dona Maria II, filha de Pedro I (D. Pedro IV em Portugal), que a apoiava, e seu oponente era seu tio D. Miguel. Mas isso é assunto para outro texto.
A “geração de 1870” e algumas de suas figuras, como Antero de Quental (um dos fundadores do Partido Socialista Português) e Eça de Queiroz, expressaram com talento e sensibilidade a letargia cívica e cultural nesse afastamento do ciclo de inovações da Segunda Revolução Industrial. O personagem queirosiano que talvez melhor expresse esse contexto é o Conselheiro Acácio, um político burocrata medíocre, moralista de fachada, algo próximo do que se revelou no Brasil recente como “cidadão de bem”.
A monarquia constitucional portuguesa foi cambaleando e passou por episódios difíceis e desgastantes como o Ultimato britânico de 1890, quando a Inglaterra demonstrou o pouco apreço por seu velho aliado, pois estava em jogo o poder na África.
Em 1910, após um levante capitaneado pelo Partido Republicano, contando também com a participação de maçons, carbonários e o incipiente movimento social, tem início a Primeira Republica. Essa experiência republicana foi marcada pela instabilidade, pelo desgaste com a participação na Primeira Guerra Mundial e pelas dificuldades para implementar algumas reformas modernizantes, como na educação. Em 1926, um golpe militar derruba o governo e em 1933 tem início o Estado Novo, que vigorará até 1974 sob a liderança de Antonio de Oliveira Salazar.
No século XX, além da condição periférica no contexto europeu, predominou até os anos 50 uma situação de isolamento econômico e distância em relação às condições de vida vigentes no padrão europeu. Foi a partir de 1960 que teve origem uma expansão da economia que leva à diminuição das diferenças entre o fosso que se cavou ao longo do século XIX e a primeira metade do século XX. A partir daí e até os primeiros anos do século XXI, o percentual do crescimento do produto per capita é superior à média europeia. Nesse período, manifestam-se intensas mudanças na economia e na sociedade portuguesa, onde os impulsos do ciclo expansivo do pós-guerra se manifestam. Junto a isso, a participação na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o ingresso na Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, em sua designação inglesa), o acordo preferencial com a Comunidade Europeia e a crescente liberação comercial, associada à integração econômica com a Europa, são acompanhados de um novo surto de emigração para os países mais ricos do continente, sobretudo a França, provocando impactos positivos na estrutura da produção e do emprego.
Ao longo desse período, em termos relativos, perde importância o peso das colônias como destino dos emigrantes e para o equilíbrio da balança de pagamentos da zona do escudo. Em conjunto, os efeitos dessas tendências em curso apontavam para o fortalecimento da opção europeia, em detrimento da opção ultramarina, em que pese o discurso oficial, que considerava as duas como complementares e justificava a Guerra Colonial iniciada em 1961, assim como o isolamento político e diplomático com a assertiva salazarista do “orgulhosamente sós”.
No início de 1974, a quadruplicação do preço do petróleo, que passou a custar quase 12 dólares o barril, prenunciava algo mais que uma simples mudança nos preços relativos –era o fim do longo ciclo expansivo iniciado no pós-guerra. Para Portugal, o 25 de abril inaugurou um novo período histórico em que, após quase 50 anos, tinha fim o salazarismo e era desmontado o império colonial, após cinco séculos de sua origem, fazendo o caminho de volta às suas dimensões exclusivamente europeias, anteriores ao período das navegações.
É importante que se diga: sem a guerra colonial não existiria o 25 de abril. Vejamos: ao longo dos 13 anos entre 1961 e 1974, além de um custo orçamental de mais da metade do orçamento, 800 mil portugueses foram mobilizados para as forças armadas e serviços civis auxiliares. Quase nove mil mortes e 15,5 mil com deficiência permanente, o que implicou em que praticamente todas as famílias portuguesas tivessem diretamente algo a ver com a guerra. Nas nações africanas, com certeza, mais ainda.
Não foi por um acidente da história que os “capitães de abril” se tornaram a pedra de toque para a Revolução dos Cravos. A jovem oficialidade foi uma espécie de radar na linha de frente para perceber o drama da guerra colonial e da própria sociedade portuguesa e seus dilemas.
O Movimento das Forças Armadas, iniciativa da jovem oficialidade, deu, sim, um golpe totalmente singular, concebido para pôr fim à guerra colonial e à ditadura do Estado Novo, com a perspectiva da construção de um regime democrático e de acesso a melhores condições de vida e trabalho. Esse é o ponto de virada que separa a história moderna de Portugal em um antes e um depois.
Em breve vamos apresentar outro texto com o Portugal pós 25 de abril.
Manhã futura
Era preciso agradecer as flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura
Sophia de Mello Breyner Andersen
Nota: o Autor agradece à Celia Bartone não apenas a revisão, mas também as sugestões de alteração do texto.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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