O auge da sociedade urbana e industrial no Brasil liberou forças sociais que se mostraram fundamentais para que a transição do autoritarismo para a democracia ocorresse na virada dos anos de 1970 para os de 1980. Depois disso, a sequência de décadas que terminaram por arruinar as bases da sociedade industrial gerou inegável desgaste nas três principais e inovadoras forças que sustentaram o ciclo político da Nova República (1985-2014).
Destaca-se que a ditadura civil-militar (1964-1985) havia operado de forma aproximada ao Estado Novo (1937-1945), quando naquela época os direitos sociais e do trabalho (previdência social, consolidação das leis trabalhistas e sindicatos urbanos) emergiram como “compensação” à contração dos direitos políticos. Nas décadas de 1960 e 1970, os trabalhadores rurais foram semi-incorporados à previdência e assistência social que se ampliou aos empregados urbanos por sua unificação e uniformização de direitos, assim como expandiu o sindicalismo no campo, entre outras medidas adotadas concomitantes à repressão, censura e violência autoritária.
Diante disso, três novas forças emergiram justamente no auge da sociedade industrial, buscando de forma inédita a aproximação e organização na base da sociedade brasileira. O ponto de partida temporal foi a segunda metade da década de 1970, quando tomou sentido concreto a reorganização do movimento popular.
Em 1975, a constituição das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) ganhou rapidamente impulso, organizando segmentos sociais dispersos e até então esquecidos das instituições tradicionais existentes. Quase dez anos depois de sua criação, quando também surgiu o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), havia cerca de 80 mil CEB’s atuando em todo o país.
Da mesma forma, a ascensão de associações de moradores voltadas aos problemas concretos da difícil vida cotidiana da maior parte da população, sobretudo nos grandes centros metropolitanos do país, concedeu voz e força aos marginalizados pela urbanização periférica do país. Diante do caos urbano, conformado por escassos e precários serviços públicos, ademais da insegurança gerada pelo avanço do tráfico de drogas e do rastro inicial do crime organizado, cerca de 10 mil representações de moradores atuavam justamente no andar de baixo da sociedade urbana e industrial.
A segunda força da base social aconteceu no interior do mundo do trabalho com a reorganização dos ocupados despertada especialmente pelas greves do ABC paulista no final da década de 1970. Diferentemente da estrutura sindical de cúpula herdada desde o Estado Novo, o novo sindicalismo se estabeleceu organizando ocupados a partir do seu local de trabalho, da sindicalização, negociação coletiva e greves, distante da dependência passada dos governos de plantão.
Duas décadas de excepcional ativismo laboral foram acompanhadas pelo salto na taxa de sindicalização que saltou de 13% dos ocupados, em 1970, para 24%, em 1980, e 32%, em 1989. Com quase 4 mil greves por ano e mais de 60 mil negociações coletivas realizadas ao ano, o sindicalismo rompeu com a cultura do dissídio coletivo e se tornou expressão nacional, com centrais de organização laboral desconhecidas até então.
Por fim, e não menos importante, houve a reorganização partidária. Em 1979, com a superação do bipartidarismo imposto desde 1966 pela ditadura, os partidos políticos foram se reconstituindo com uma novidade: a criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Salvo a longeva experiência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja ilegalidade alcançou mais de 60 anos, as demais organizações partidárias foram, em geral, constituídas e operadas por políticos profissionais que representavam a elite social e econômica, com influências do poder executivo.
Com formação distinta, o PT cresceu rápida e inegavelmente. Partindo de vitórias eleitorais desde prefeituras, alcançou governos de estados da federação até ascender à presidência da República com militantes e políticos renovadores e identificados com o andar de baixo da sociedade.
Tudo isso, contudo, encontra-se na encruzilhada da história nacional. Desde o ingresso passivo e subordinado do Brasil na globalização, em 1990, a trajetória nacional tem sido a de desconstituição da sociedade industrial.
Com isso, as forças de base social foram sofrendo desgastes significativos, distanciando-se do andar de baixo da sociedade brasileira. Esta, por sua vez, sofre crescente conexão com o novo sistema jagunço urbano, cujo ativismo do fanatismo religioso e banditismo social ocupa o vácuo deixado pelo enfraquecimento dos movimentos popular, sindical e partidário.
A reestruturação econômica a ocorrer em plena transição para a Era Digital coloca na expansão do setor de serviços outra sociedade a se fundamentar pela centralidade do trabalho em novas dimensões. A desindustrialização no Brasil deu lugar ao inchamento de atividades populares e de subsistência que associadas às tecnologias de comunicação e informação demandam outra estrutura integradora e de representação dos interesses.
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Ilustração: Mihai Cauli
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