O Estado de bem-estar social foi uma enorme inovação política e social introduzida no capitalismo. Se foi o cálculo econômico, uma maior consciência social ou o fantasma do comunismo que o fez se tornar a política que viabilizou os 30 anos gloriosos do capitalismo no pós-segunda guerra mundial é difícil saber. Provavelmente uma mistura dos três. Essa construção institucional para a vigência de um capitalismo civilizado é o que ainda confere um padrão de vida confortável nas economias desenvolvidas. Ela passou a sofrer um forte ataque de uma concepção liberal-conservadora que fora derrotada no imediato pós-guerra, mas que voltara renovada, no final dos anos 70 e início dos 80, com as vitórias de Reagan e Thatcher nos Estados Unidos e Reino Unido. Trump e seu filhote Bolsonaro são um subproduto dessa destruição institucional.

O neoliberalismo com uma visão do individualismo possessivo advoga que cada um deve buscar o máximo de satisfação e que essa busca não pode ser limitada pela vida social. Ela é independente. Isso é o que torna o ser humano forte. Sem mimimi. Sem medo da morte. A busca incansável dessa máxima satisfação individual, custe o que custar, vai fazer com que a sua resultante seja o máximo de ganho para todos. Transforma a morte, e não a vida, em seu objetivo final. Não existe lugar para os mais fracos. Skidelsky mostra que a contrapartida dessa visão de sofrimento e morte está fortemente inserida na corrente hegemônica da macroeconomia com o conceito de austeridade fiscal.

  • One may feel that insistence on the need for short-run pain (e.g. austerity) for the sake of long-run gain, when the short-run can last decades and the long-run may never happen, testifies to a refined intellectual sadism. (Skidelsky, “Money and Government”)

A ideia de austeridade fiscal desconhece que o cidadão, não o indivíduo, é um pagador de impostos em todas as suas atividades como trabalhador, produtor e consumidor. O Estado de bem-estar social é um direito seu, não um favor do Estado, e um entrave para a realização da sua máxima satisfação como indivíduo.

A formação econômica e social do Brasil produziu uma elite que sempre tratou a questão social como um caso de polícia. A sociedade elitizada e preconceituosa mantém um enorme desprezo pela vida humana dos outros, desde que não estejam entre os reconhecidos como seus iguais. Esse preconceito e discriminação ficaram claros com a enorme penetração do negacionismo na sociedade e a impiedade pela vida dos cidadãos brasileiros mostrada pelo atual governo e compartilhada pelos seus seguidores.

Essa visão perversa e canhestra é uma paralaxe da vida social. Não consegue nem enxergar o custo econômico, o prejuízo na arrecadação de impostos, para ficar na visão deformada do processo econômico do ministro da (des)economia. Não leva em conta nem o impacto na atividade produtiva dos mortos e infectados. Quanto custou e custa ao Estado por ano um cidadão atingido pela Covid-19? As mais de 260.000 mortes vão reduzir a força de trabalho e diminuir o seu potencial de produzir e pagar impostos.

O presidente constantemente afirma que se todo mundo ficar em casa a economia acaba. O que acaba com a economia é a pandemia descontrolada. Essa visão em paralaxe do presidente e do seu ministro da (des)economia desconsidera a realidade.

No primeiro semestre de 2020, a maioria das previsões apontava para uma queda do PIB entre 6% a 9%. Caiu 4,1%. O elemento central para essa relativa melhora foi a pressão da sociedade e o reconhecimento pelo Congresso da necessidade de um grande gasto público que gerou uma expansão fiscal de 7% do PIB (R$ 524 bilhões). O auxílio emergencial foi o principal fator para esse desempenho melhor do que o previsto.

Porém, a observação em paralaxe do ministro da (des)economia antes do final de 2020 já anunciava que a recuperação era um sucesso garantido, a pandemia estava em queda e não haveria mais necessidade de expansão fiscal. O país estava pronto para iniciar o círculo virtuoso (sic) das reformas liberais que trariam a “fada confiança” de volta e o investimento privado deslancharia e produziria o crescimento econômico. Faltou combinar com a Covid-19.

Essa visão, em conjunto com o permanente negacionismo do presidente e o desastre que é a política de saúde, acarretou a completa flexibilização das normas de prevenção e de isolamento social.

Evidentemente, a pandemia voltou mais forte. A economia voltou a desacelerar. O desemprego aumentou. A crise social e política recrudesceu.

Mas a visão em paralaxe do presidente e do ministro da (des)economia os dota de uma visão que corre em paralelo com a realidade da pandemia. Assim, propõem um pacote de expansão fiscal inferior ao anterior, de menor valor e duração, quando a crise sanitária está mais grave. E, para não negar o espírito de “Tânatos” com contrapartidas fiscais, o ajuste fiscal tem de prevalecer sobre a necessidade da vida. A vida não é um direito do cidadão. É uma dádiva para aqueles que forem fortes, não tiverem medo do vírus e o enfrentarem sem mimimi. Tem que ser macho.

Mas mesmo com essa visão em paralaxe da realidade, o Bozo sente alguns golpes que o tiram do sério e o acuam. É quando a oposição e a sociedade cobram a sua responsabilidade sobre o auxílio emergencial, a vacinação e as medidas de prevenção social para enfrentar a pandemia. Isso mostra a sua preguiça e o seu medo. Esse deve ser o centro da política de enfrentamento ao Bozo e ao seu ministro da (des)economia. Isso é o que está fazendo a sua popularidade cair. Vai aumentar a frequência dos panelaços. Isso é o que vai trazer a possibilidade do impedimento.

Ao que parece, a sociedade começa a despertar para a luta mais frontal. A maioria dos governadores se uniu, alguns bolsonaristas inclusive, para cobrar um plano e maior agilidade na vacinação. Outros tomaram medidas mais duras de isolamento social.

Essas são as questões centrais que temos de fortalecer para aumentar a coesão da oposição e o isolamento do Bozo. Mesmo que a política tenha autonomia em relação ao econômico e o social, não podemos cair na tentação de criarmos a nossa visão em paralaxe. É legítimo que qualquer partido comece a pensar em 2022 e que tenham a proposta de candidatos próprios. Porém, a prioridade é que se construa uma frente comum para o enfrentamento da pandemia: auxílio emergencial até o fim da pandemia de R$ 600,00, vacinação em massa e medidas de prevenção social até que a vacinação produza os seus efeitos de contenção da pandemia. Essa é a agenda de “Eros” da vida.

Não é a hora de discutir as candidaturas. Esse é o campo do Bozo. Ele não é burro. Pode ser ignorante, mas sabe manejar os cordéis da política. Ainda tem uma forte base de apoio popular, armou a população e corteja permanentemente as forças de segurança. O Bozo, com sua visão em paralaxe e o seu comportamento de quando acuado se tornar mais agressivo, constitui um enorme risco de retrocesso institucional com um possível autogolpe.

É essa capacidade dos políticos autoritários falarem apenas para as suas bolhas e reforçarem o seu discurso radicalizado, na maioria das vezes sem relação com a realidade, que os tornam perigosos institucionalmente pela constante aposta nos extremos. Essa é tese central do livro “Os engenheiros do caos”.

  • “Por trás do aparente absurdo das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são um simples instrumento de propaganda. Contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão. “Por vários ângulos, o absurdo é uma ferramenta organizacional mais eficaz que a verdade”, escreveu o blogueiro da direita alternativa americana Mencius Moldbug. “Qualquer um pode crer na verdade, enquanto acreditar no absurdo é uma real demonstração de lealdade – e que possui um uniforme, e um exército.” (Da Empoli)

Temos que atravessar 2021 com a proposta de consolidar a visão no imaginário dos brasileiros de que o Bozo é um risco para a vida, para a democracia e para a economia. Para a civilização brasileira.

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