O show retórico de Trump gira em torno da Groenlândia, Canadá e Canal do Panamá, porém a real preocupação dele e de sua equipe é com a expansão do protagonismo da China.

Trump e a “diplomacia da corda esticada”

Ucrânia… Oriente Médio… Mar do Sul da China e Taiwan… pontos nevrálgicos da discussão diplomática internacional dos EUA no último período. Sobre os quais muitos gostariam de ver declarações francas do novo governo dos EUA que toma posse no próximo dia 20, ou pelo menos declarações sobre o tema que permitissem alguma leitura das entrelinhas. Ao invés disso, bombásticas declarações sobre a incorporação do Canadá como 51º estado dos EUA, a compra da Groenlândia, a retomada do Canal do Panamá são o que tem marcado o período pré-posse do novo governo Trump nos EUA.

Não que as bombásticas declarações não envolvam interesses importantes.

O Canadá é um grande fornecedor de petróleo e combustíveis aos EUA: esses produtos respondem por cerca de um terço da bilionária pauta de exportações do Canadá para os EUA. Mas, fundamentalmente, é uma importante fonte de água doce para os EUA (e também para China, Japão e Coreia do Sul). Os EUA vivem premidos pela seca na Califórnia e pelo esvaziamento de seu aquífero que abastece a área central do país (os estados responsáveis pelo abastecimento de carnes, cereais, soja e alguns outros produtos agrícolas importantes nos EUA, como algodão), e a água é um recurso extremamente estratégico nesse mundo das mudanças climáticas. Para um governo negacionista sobre o tema das mudanças climáticas como o de Trump, ter uma fonte de água próxima e disponível é importante e estratégico.

A Groenlândia é uma área extensa com duas importantes características. Fonte importante de terras raras, que estão sendo exploradas por empresa conectada com a China, ganha dimensão ainda mais estratégica pelo acesso importante ao Ártico. Com o derretimento esperado do gelo pelas mudanças no clima, avançará e reduzirá o custo da exploração de minerais estratégicos e petróleo, assim como avançarão as possibilidades de navegação pelo Ártico, fazendo a Groenlândia crescer de importância.

Essa extensa área (pouco mais de dois milhões de quilômetros quadrados, cerca de um quarto do Brasil) é muito pouco habitada (menos de 60 mil habitantes, ou seja, todos os seus habitantes não enchem totalmente o estádio do Maracanã), e no período recente tem ampliado sua autonomia em relação ao Estado Nacional que a controla, a Dinamarca – formalmente, a Groenlândia é uma região autônoma daquele país. A Dinamarca (que atualmente tem um governo de centro-esquerda liderado pelos sociais-democratas) ainda responde por questões de segurança e diplomacia da Groenlândia, mas a autonomia do governo local vem se ampliando.

O atual governo da ilha é chefiado por Múte Egede, líder do Partido do Povo Inuíte (os inuítes são povos originários da região), um partido de centro-esquerda, independentista e com forte base ambientalista, vinculado à chamada “Esquerda Nórdica Verde” no Parlamento Europeu. O partido que chefia o governo da Groenlândia, no que ele é autônomo, não é favorável à exploração mineral e ao extrativismo na ilha. Mais complicado, é favorável à independência da Groenlândia (que, na língua inuíte, deixa de ser a “terra verde” – significado de Groenlândia – e passa a ser a Kalaallit Nunaat, a “nossa terra”, o que reforça o nacionalismo local). Pouca gente, território grande, riquezas potenciais, importância geopolítica, e uma possível fonte de dores de cabeça para os dinamarqueses com a discussão da independência. É esse o vespeiro que Trump está atiçando.

Sobre o Canal do Panamá, assim como na sua criação (quando os EUA incentivaram a independência de uma parte do território colombiano para em seguida ali completarem a construção de um canal ligando o Atlântico ao Pacífico, iniciada pelos franceses), o Canal segue sendo importante como uma rota para abreviar as distâncias do transporte marítimo e baratear custos de deslocamento de produtos de um oceano a outro. Para os EUA, é essencial para a integração dos mercados nacionais, as costas Leste e Oeste do país.

O Panamá tornou-se independente da Colômbia em 1903 com o apoio dos EUA, e cedeu no ano seguinte aos EUA os direitos sobre o Canal, cuja obra foi concluída dez anos depois. Desde 1913 até o final do século XX, o Canal e a zona em seu entorno foram administrados pelos EUA. Por acordos de 1977, entre o recém-falecido presidente estadunidense Jimmy Carter e o presidente panamenho General Omar Torrijos, a Zona do Canal e a administração do Canal do Panamá passaram ao país latino-americano em 1999, e desde então vêm sendo administrados sem problemas pelas autoridades panamenhas.

Qual o problema recente, que motivou as palavras provocativas de Trump sobre os EUA retomarem a gestão do Canal do Panamá? Existem duas questões. A primeira é a possibilidade de ampliação do canal, de forte interesse geral, mas, em especial, da China, por conta das rotas comerciais de interconexão entre a China e seus compradores e fornecedores, no projeto denominado Iniciativa Cinturão e Rota. A segunda, desde a metade da década passada, o Panamá instituiu mudanças nas cobranças sobre embarcações que trafegam pelo canal, estabelecendo aumentos do pagamento para alguns produtos, como o gás natural. Além disso, as mudanças climáticas que vêm acontecendo aumentaram a diferença de nível entre as diversas eclusas do canal, exigindo esforço energético adicional para nivelá-las, gerando custos adicionais. Isso fez subir as tarifas de tráfego de embarcações pelo Canal, e é exatamente isso o que está sendo contestado por Trump.

Nos três casos em tela, os EUA têm interesses muito objetivos, mas o tom da ameaça que fazem acaba indo muito além do que querem de fato negociar. Parece folclore do novo presidente, ou bravata, mas faz parte de uma estratégia de negociação de “esticar a corda”, usando de ameaças para forçar o recuo do outro lado, além de fazer cena para o público interno nos EUA. A tática negociadora de “esticar a corda”, entretanto, é uma tática arriscada, pois tanto pode se expor como tática negociadora, e em algum momento forçar quem a usa a “mostrar suas cartas”, o que pode ser complicado, como pode também, ao se topar com um negociador que também resolva esticar a corda, levar a rupturas, com consequências imprevisíveis. Mas, de fato, vai se expondo para o mundo, já que não é a primeira gestão de Trump, como uma tática negociadora.

Mas, para os principais problemas da conjuntura atual, que não dizem respeito a Groenlândia, Canadá e Canal do Panamá, sinaliza uma lógica de enfrentamento com os interesses chineses, que deve ser a tônica no próximo período. Este ponto, sim, serve para antever o posicionamento dos EUA nos temas de fato em discussão.

Essas são, talvez, as conclusões a que podemos chegar sobre a estratégia negociadora de Trump neste momento pré-posse.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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