Regulamentação e tributação das plataformas de Streaming

Assuntos áridos tratados de uma forma que todos possam compreender.

Pela tradução livre da Enciclopédia Britânica, streaming é um “método de transmissão de um arquivo de mídia, em um fluxo contínuo de dados que podem ser processados pelo computador receptor antes que todo o arquivo seja completamente enviado”. Trata-se, portanto, de infraestruturas digitais que transmitem conteúdos aos múltiplos consumidores, a qualquer momento, sempre que existirem ligações à internet de banda larga com capacidade de transmissão, recebimento e decodificação de dados em velocidade de processamento em tempo real.

Existe elevada correlação entre o fenômeno streaming e o estado da arte da tecnologia. Nas décadas de 1970/80, emergiu o que se convencionou chamar de 1G, com a viabilização das chamadas telefônicas móveis. Na década de 90, houve o advento da 2G, que acrescentou a possibilidade de envio de mensagens do tipo SMS. A partir dos anos 2000, foi disponibilizado o acesso à internet, com 2MBs, o que foi batizado como 3G. Nos anos 2010 em diante, com a tecnologia 4G, a tudo isso se somou o streaming de música e de vídeo, com 150 MBs. Na presente década, já existe nos países mais avançados, em especial na China, a tecnologia 5G, com 1,5GBs de velocidade, que traz no seu bojo o conceito de internet das coisas, possibilitando a utilização em larga escala de inteligência artificial avançada, conectando bilhões de elementos (equipamentos, objetos, robôs e pessoas) com armazenamento em nuvem. Destacam-se quatro pontos fundamentais da tecnologia 5G:

  • Velocidade – 10 vezes mais rápida, permitindo a captação de conteúdos com alta qualidade em realidade virtual ou em TV’s;
  • Latência – tempo de resposta (comando versus resposta) reduzido para 1 ms (viabilizando veículos inteligentes sem motoristas, operações cirúrgicas à distância, etc.);
  • Conectividade – possibilita que uma mesma antena atenda com a mesma qualidade cem pessoas a mais do que a 4G, o que diminui o problema de cobertura, reduzindo em 10 vezes o consumo de bateria dos dispositivos; e
  • Internet das coisas – comunicação das pessoas com seus equipamentos (carros, eletrodomésticos, etc.) possibilitando uma comunicação mais eficiente com aumento da capacidade de armazenamento das informações em cidades inteligentes, através de múltiplas redes que armazenam as informações.

Voltando um pouco na história, para um entendimento das mudanças na demanda do público por novo conteúdo, o sucesso do Youtube, lançado em 2005, enterrou o velho hábito de se ter hora marcada para consumir conteúdo. Surgiu o conceito de “on demand”, no qual é o consumidor quem decide o que assistir, quando, onde e como. O modelo de negócios de conteúdo online conquistou o mercado. Os usuários assistem filmes e shows na hora que desejam, podendo pausar ou voltar; sem necessidade de fazer o download do conteúdo para seu equipamento. Nesse contexto, apareceram as TVs a cabo e, posteriormente, as plataformas streaming.

Com tanta tecnologia e facilidade, o público aderiu maciçamente a essas novas plataformas. Ocorreu, assim, um crescimento exponencial da demanda pelos produtos e serviços oferecidos como alternativa ao cinema no mercado de entretenimento. Milhões de pessoas passaram a assistir filmes e séries, muitos dos quais, de forma compulsiva. Surge daí o fenômeno do Binge-Watching, que pode ser entendido como o ato de assistir em pouco tempo, na base da maratona, as séries e filmes disponíveis nas plataformas de streaming.

O streaming consolidou o modelo de distribuição global de conteúdo de uma vez por todas, com aceitação de produções das mais diversas nacionalidades pela maior parte dos clientes; uma verdadeira globalização.

As plataformas de streaming servem para a distribuição de filmes novos, depois de algum tempo em cartaz e, também, dos produtos próprios, novos, e os já existentes. Os catálogos não ficam restritos a barreiras geográficas e podem chegar a qualquer canto do mundo através da internet.

Além da Netflix, da Amazon Prime Video e da Globoplay, a concorrência se amplia com as decisões de investimento no mercado brasileiro de streaming pela HBO Max (Warner), Youtube Originals e Disney+.

O mercado brasileiro é um dos maiores do mundo para as plataformas de streaming e a base de consumidores já está bem formada. É um mercado que merece a aposta, com seus 64 milhões de lares com TV, 16 milhões de assinantes de TV paga, 32,5 milhões de assinantes de banda larga fixa e 185 milhões de celulares com banda larga.

O vídeo sob demanda é tratado internacionalmente como segmento do mercado audiovisual. A Medida Provisória  Nº 2.228-1, de 6 de setembro de 2001, regulamentou todos os segmentos da indústria do audiovisual. Ela estabeleceu princípios gerais da Política Nacional do Cinema, criou o Conselho Superior do Cinema e a Agência Nacional do Cinema – ANCINE, instituiu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional – PRODECINE, autorizou a criação de Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional – FUNCINES e, dentre outras medidas, alterou a legislação sobre a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, criando a CONDECINE, como uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE). A contribuição CONDECINE tem como destinação legal o Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, fazendo com que tanto a origem como a destinação dos recursos ocorram na própria atividade audiovisual.

Os fatos geradores da CONDECINE foram disciplinados pelo artigo 32 da MP 2.228-1, em três tributos diferentes se considerados fatos geradores, bases de cálculo e sujeitos passivos da obrigação tributária. São eles: a CONDECINE-teles (art. 32, II), mais simples, que recai sobre serviços de telefone celular, antena, estação etc., a CONDECINE-remessa (art. 32, § único) que é a única alíquota ad valorem, correspondente a 11% do valor de cada operação de pagamento ou remessa de rendimentos ao exterior e, por fim, a CONDECINE-título (art. 32, I e III), de estrutura mais complexa, tem incidência anual ou quinquenal, distingue tipos de obras e incide sobre cada segmento de mercado e prevê alíquotas específicas (valores fixos) para cada um desses casos, constantes da Portaria mencionada abaixo.

Portaria Interministerial Nº 835, de 13 de outubro de 2015: “ANEXO I – Art. 33, inciso I: (…) e) OUTROS MERCADOS (exceto obra publicitária):

  • Obra cinematográfica ou vídeo fonográfica de até 15 minutos – R$ 729,12
  • Obra cinematográfica ou vídeo fonográfica de duração superior a 15 minutos e até 50 minutos – R$ 1.701,29
  • Obra cinematográfica ou vídeo fonográfica de duração superior a 50 minutos – R$ 7.291,25
  • Obra cinematográfica ou vídeo fonográfica seriada (por capítulo ou episódio) – R$ 1.822,81

De fato, em 2001, o legislador optou por segmentar a incidência do tributo em função da própria segmentação do mercado audiovisual. Nesse sentido, a contribuição passou a incidir sobre título ou capítulo de obra cinematográfica ou vídeo fonográfico destinado aos vários segmentos de mercado, tais como salas de exibição, vídeo doméstico, serviço de radiodifusão de sons e imagens (TV aberta), serviços de comunicação eletrônica de massa por assinatura (TV paga) e “outros mercados” onde, na ausência de classificação melhor, entrou o VoD (Video on Demand).

Sabendo que o tratamento tributário é uma matéria chave para a equação de viabilidade dos empreendimentos de vídeo sob demanda, a ANCINE, no exercício de 2019, colocou em consulta pública seu Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) visando à regulação do mercado de vídeo sob demanda. As principais questões abordadas no Relatório são resumidas a seguir:

  • (i) A cobrança da contribuição CONDECINE sobre a oferta de cada título dos catálogos onera de maneira igual capacidades contributivas desiguais, cria barreiras para os pequenos provedores e desestimula a formação de catálogos mais diversificados, em especial, a colocação de filmes e séries nas lojas do varejo digital em virtude do custo fixo inicial, que pode ser expressivo para muitas obras e proibitivo para alguns catálogos, dentre eles os conteúdos estrangeiros de produção independente e as obras de arte e ensaio. Isso explica a inadimplência no recolhimento dos tributos por título por parte de alguns provedores.
  • (ii) Necessidade de um marco regulatório equilibrado para os serviços de TV por assinatura e os de VoD, com estímulos adequados à diversidade dos catálogos e à circulação dos conteúdos audiovisuais brasileiros, visando a uma simetria entre os segmentos, principalmente no tocante à CONDECINE-título.
  • (iii) Constatação de que os serviços de VoD contam com tributação extremamente favorecida, tanto em relação aos segmentos concorrentes, quanto na comparação com outros países; sua carga tributária se situa entre um terço e metade da dos demais países.
  • (iv) a importância do estabelecimento de regras que incentivem os provedores de VoD a investirem em produção e licenciamento de obras brasileiras independentes, para garantir a continuidade do crescimento do setor audiovisual brasileiro, a exemplo do que já ocorre com inúmeros países europeus.

Como o crescimento dos estoques de filmes das plataformas de streaming já é totalmente desproporcional à capacidade de produção de filmes brasileiros, seriam bem-vindas normativas para garantir um volume mínimo de investimentos na produção ou licenciamentos de conteúdo nacional, o que poderia ser financiado pela regulação da cobrança da CONDECINE sobre a receita auferida pelos serviços de Vídeo on Demand, a exemplo do que já ocorre com a prestação de serviços que se utilizam de meios que possam, efetiva ou potencialmente, distribuir conteúdos audiovisuais.

Por último, também é necessária a criação de cotas mínimas de exibição de conteúdos brasileiros nos catálogos para possibilitar a ampliação de seu visionamento pelos usuários, a exemplo do que já foi estabelecido na União Europeia, com vigência a partir de 2020. Com mais de dez anos de atuação das plataformas, o conteúdo nacional ainda representa somente menos de 10% dos catálogos.

A Netflix, em sua contribuição à consulta pública formulada pela ANCINE e comentando as considerações contidas no Relatório de Análise de Impacto no. 001/2019/ANCINE/SAM/CAM, notoriamente contrariada com o diagnóstico e a proposta de regulação da prestação dos serviços VoD no Brasil, após um longo “jus esperniandi”, finalizou sua contribuição com a seguinte assertiva:

  • Utilizando os serviços de VoD como ferramenta, o Brasil tem a oportunidade de tornar-se um dos líderes mundiais na produção e distribuição de conteúdo audiovisual de qualidade, espalhando sua cultura, narrativa e formatos ao redor do globo. Contudo, essa liderança somente poderá ser conquistada se o Brasil adotar uma postura que proporcione um mercado de VoD vibrante e sustentável, sem regulamentação excessiva, que se aproveite da característica da Internet de não ter fronteiras para propagar o Brasil e disseminar o conteúdo audiovisual nacional pelo mundo (pág. 12).

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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