O ultimato russo e os EUA

Dada a velocidade com que os acontecimentos vêm se desdobrando na cena internacional, esse artigo poderá estar completamente defasado quando chegar às mãos dos leitores.

No entanto, vale fazer uma retrospectiva sobre o desenrolar dos fatos até o momento pois, se depender da mídia ligada ao grande capital – e que por isso mesmo impõe sua narrativa distorcida quando não descaradamente mentirosa –, o que vier a acontecer pode ser uma grande surpresa para a maioria dos habitantes do planeta.

Um cenário que já estava carregado de tensões desde o final de abril passado, quando houve uma nova escalada do conflito na fronteira da Rússia provocada pelos nazistas ucranianos, agora atingiu um novo patamar, depois que os russos passaram a exigir que estadunidenses e europeus ocidentais, secundados pelas repúblicas da ex-União Soviética, suspendam o apoio a essas provocações e ponham fim ao avanço da OTAN em direção à fronteira russa.

Por não confiar mais na possibilidade de qualquer acordo com os EUA, a Rússia vem exigindo agora um compromisso com cláusulas juridicamente vinculantes. Não poderia ser diferente já que os EUA, após terem se comprometido em 1999 com a Carta de Segurança Europeia aprovada em Istambul, continuam a desrespeitá-la sistematicamente. Por esse acordo, uma área de segurança nas fronteiras da Rússia não seria militarizada. Mas, imediatamente, a OTAN iniciou sua expansão, integrando nessa aliança militar as antigas repúblicas soviéticas da Europa oriental.

Tal expansão nunca foi pacífica, como prova a guerra contra a Iugoslávia, o golpe sangrento na Ucrânia em 2014, a tentativa de golpe na Bielorrússia no ano passado, a tentativa de golpe discretamente neutralizado em dezembro no Quirguistão e ainda no início do ano o ataque terrorista perpetrado contra o Cazaquistão e comandado, segundo revelou o presidente cazaque, por uma sala secreta de operações de inteligência militar baseada num centro comercial ao sul de Almaty. Essa sala era coordenada por 22 estadunidenses, 16 turcos e seis israelenses, que comandaram as gangues treinadas pelos turcos na Ásia Ocidental e que tinham como missão sabotar e assassinar agentes do governo que posteriormente as encurralaram no decorrer da contraofensiva aos golpistas.

As fontes de inteligência do Quirguistão atribuem a engenharia desses ataques terroristas híbridos a uma miríade de ONGs ligadas ao ocidente, que têm por objetivo instabilizar toda a Ásia Central, que é por onde passam e passarão vários ramais da Nova Rota da Seda. Mas, claro, todos esses eventos na região não passam de “coincidência”.

Por mais que os russos tentem não apresentar como ultimato essa ofensiva diplomática que desencadearam desde o final do ano passado, é exatamente disso que se trata. Deve-se considerar que, em primeiro lugar, a iniciativa partiu dos russos e com uma proposta objetiva, detalhada e abrangente sobre que garantias devem ser dadas à Rússia num novo pacto, para assegurar a estabilidade na Europa. Não poderia ser diferente já que para os russos e para quem tem interesse em reconhecer o óbvio, está claro há muito tempo que a tentativa dos EUA sempre foi a de isolar e destruir a Rússia. Ao desembarcarem tropas em Arkhangelsk durante a Revolução Russa, essa intervenção já estava lançando as bases do que viria a ser a futura confrontação entre os dois países.

E do lado ocidental, qual está sendo a reação a esse ultimato de fato que acena também com medidas duras e unilaterais da Rússia se as ações hostis do ocidente continuarem? A mais pusilânime possível, beirando mesmo o que se poderia chamar de uma molecagem extremamente perigosa, se considerarmos o que está em jogo.

Um “detalhe” a ser observado é a drástica mudança na linguagem usada pelos russos. Sempre tão ciosos no uso da linguagem diplomática, agora Lavrov e os demais funcionários de alto escalão da diplomacia russa têm dito sem rodeios que não há ninguém nos EUA e entre seus aliados europeus que seja capaz de assumir e sustentar um compromisso com qualquer acordo alcançado. Isso parece um contrassenso se considerarmos que os russos exigem as tais garantias juridicamente vinculantes de quem eles apontam como incapazes de respeitar qualquer pacto por mais simples que seja.

Se existe tal incapacidade, então de que serviriam tais garantias? O que está por trás dessa aparente contradição pode ser a intenção dos russos de esgotarem todas as iniciativas diplomáticas antes de tomarem outras medidas. Outra possibilidade é que nesse momento os russos se sentem cacifados por uma série de desenvolvimentos técnico-militares que lhes garante certa vantagem estratégica caso os EUA e seus acólitos resolvam dobrar a aposta. Ou, simplesmente, resolveram que em algum momento terão que dar um basta nessa situação intolerável onde os EUA – que ainda se pretendem como poder unipolar já não o sendo – provocam sistematicamente a Rússia usando ameaças, chantagens e sanções como se essa potência nuclear e hipersônica fosse uma republiqueta qualquer.

Tanto isso é verdade que em 14 de janeiro de 2022, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, acusou os russos de estarem preparando um ataque de falsa bandeira e usá-lo como pretexto para invadir a Ucrânia “entre meados de janeiro e meados de fevereiro”. Como sempre, sem apresentar uma única prova… e considerando que esse é o expediente preferido pelos ianques quando querem apresentar uma “justificativa” para seus próprios ataques contra países onde os governos não se submetem a seus desmandos.

No entanto, no dia anterior, 13 de janeiro, Jake Sullivan, assessor de segurança nacional dos EUA, declarou que a “comunidade de inteligência dos EUA não crê atualmente que a Rússia tenha decidido definitivamente invadir a Ucrânia”. Por seu lado, John Kirby, porta-voz do Pentágono, fez declarações similares às de Psaki. “[…] Temos informação de que eles [Rússia] pré-posicionaram um grupo de operacionais para conduzir o que chamamos de ‘operação de bandeira falsa’, uma operação desenhada para parecer um ataque contra eles ou seu povo, ou pessoas russófonas na Ucrânia, mais uma vez, como uma desculpa para entrar. Já temos indicações de que atores de influência russos já estão preparando a fabricação de provocações ucranianas tanto na mídia como nas redes sociais, para tentar justificar antes do tempo algum tipo de pretexto para incursão.” Contudo Kirby não revelou que tipo de dados de inteligência os EUA teriam sobre as alegadas preparações da Rússia para invadir a Ucrânia.

No dia 19 de janeiro, foi a vez de Biden rosnar contra os russos em entrevista coletiva na qual disse que Vladimir Putin nunca viu sanções como as que serão impostas se as tensões aumentarem na Ucrânia. Apesar de ter subido o tom, ameaçando retirar a Rússia do sistema internacional de pagamentos interbancários – SWIFT, o presidente estadunidense acrescentou que teve “conversas muito francas” com Putin e que ambos “não tiveram problemas” em se entender. Mas, ao mesmo tempo em que fez tal ameaça, Biden caiu numa contradição, aparentemente sem ter se dado conta, ao declarar que “uma coisa é se for uma pequena incursão. Mas, se eles realmente fizerem o que são capazes de fazer, será um desastre para a Rússia, se eles invadirem a Ucrânia“.

O que essa declaração significa exatamente? Que os russos podem intervir até certo ponto? Sendo assim, qual seria o limite dessa intervenção além do qual ela seria considerada pelos EUA além da conta e, portanto, um ”desastre para a Rússia”? Ou tal declaração simplesmente significa que Biden está senil e não sabe mais o que diz?

Por outro lado, o secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia, Aleksei Danilov, em 31 de dezembro do ano passado, definiu como “ataque informativo” contra o país a campanha midiática em torno de uma suposta guerra. Ele não “…considera provável que a Rússia invada o país…”. “Hoje, não vemos um grande perigo nas fronteiras […] Não vemos nenhuma ameaça aberta de agressão por parte da Federação da Rússia“, observou Danilov durante uma conferência de imprensa após uma reunião do Conselho. Ele também ressaltou que, para que uma invasão em grande escala tivesse êxito, a concentração de tropas russas nas zonas fronteiriças deveria ser “ao menos três, quatro, cinco vezes maior do que é hoje“.

Então, nos quatro parágrafos acima, podemos ter uma ideia da leviandade com que os EUA e a Europa estão tratando a possibilidade da eclosão de um conflito que na sua escalada poderá levar a uma guerra nuclear. Tudo o que os EUA e seus subordinados têm feito é ameaçar a Rússia por conta de uma guerra que ela não tem o menor interesse que aconteça e tergiversar sobre a proposta russa de discutir seriamente um pacto que estabeleça garantias mútuas e acabe com as tensões que nesse momento chegaram ao ponto muito próximo de uma ruptura.

Em um artigo sobre a tentativa do governo dos EUA e particularmente do secretário de estado dos EUA de tentarem se aproveitar do “terreno moral elevado, quando se trata da questão da intervenção militar”, o portal russo de notícias RT observa muito bem que as ações da Rússia em relação à Crimeia e à região de Donbass foram mera decorrência do golpe de estado híbrido dado na Ucrânia por nazifascistas patrocinados pelos estadunidenses. Com direito até à distribuição de biscoitinhos para os golpistas na praça Maidan de Kiev, feita por Victoria Nulan, aliás Nudeland, secretária de Estado Adjunta dos EUA para Assuntos Europeus. Aquela mesma do “foda-se a Europa”.

O portal RT também lembra ao secretário Antony Blinken que a “aliança ostensivamente ‘defensiva’ da OTAN tem sido, desde o fim da Guerra Fria, usada para ações militares quase exclusivamente ofensivas, muitas das quais ocorreram fora dos limites geográficos definidos pelo ‘seu próprio tratado’ e habitualmente… semeando caos, morte e destruição em seu caminho”. Nesse contexto, a Rússia tem aparecido como “a equipe de limpeza de emergência encarregada de tentar limpar a bagunça” após a passagem de cada “tornado” formado no âmbito das guerras híbridas e de amplo espectro que se tornaram a principal ferramenta da política externa dos Estados Unidos.

Mas o RT erra miseravelmente ao afirmar que “infelizmente para Washington, o resto do mundo sabe a verdade, e quem é o culpado pelo quê. Blinken pode continuar proferindo tolices sobre a Rússia” porque na opinião dos operadores do portal as mentiras dos EUA são inócuas. Num mundo onde a capacidade de criar narrativas está praticamente toda na mão do grande capital e onde a Rússia está apenas engatinhando, a verdade é aquilo que é imposto por quem tem o poder de fazê-lo.

Assim, a maioria das pessoas de nosso mundo não tem a mínima ideia da magnitude dessa crise e o que está em jogo nesse momento, pois a mídia empresarial não a aborda pelo viés da informação e sim como propaganda de guerra. A afirmação do RT sobre a capacidade de a verdade se impor por si só à mentira bem demonstra o quanto os russos ainda precisam percorrer um longo caminho no campo da comunicação de massa.

E infelizmente porque a Rússia não tem esse poder é que ela terá, mais cedo ou mais tarde, que se impor sobre o império da mentira pela força das armas. No momento, e mais uma vez, estamos perigosamente próximos desse desfecho com consequências imprevisíveis.

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

Clique aqui para ler “Quem não quer a paz no Afeganistão?”, do mesmo autor.