Serão necessárias décadas de esforço intelectual, escreve Paul Mason, antes que uma nova ordem mundial emerja do caos cumulativo.

Primeiro veio o Afeganistão – o súbito colapso do governo em agosto de 2021, e com ele 20 anos de processo ocidental de “construção nacional”. Em seguida, no mês de fevereiro seguinte, veio a Ucrânia – a primeira guerra convencional em larga escala na Europa desde 1945, com a Rússia desencadeando uma barbárie no estilo do século XX, amplificada pela guerra da informação do século XXI.

E agora vem o brutal ataque do Hamas em 7 de outubro e a resposta letal de Israel. O risco não é apenas o de que a invasão de Israel a Gaza provoque uma guerra regional, com os proxies do Irã no Líbano, Iêmen e Iraque coordenando seus ataques. O perigo estratégico é que o poder dos Estados Unidos na região entrará em colapso. Cada um desses eventos traumáticos foi um fracasso dos Estados Unidos: Donald Trump fracassou em seu acordo de paz com o Talibã; Joe Biden falhou na tentativa de reverter o acordo e também em deter a agressão russa contra a Ucrânia.

Agora, os EUA correm o risco de fracassar no Oriente Médio – a principal região que escolheram para manifestar seu poder depois da sua retirada do Vietnã na década de 1970. De Riad ao Cairo, sua influência nas capitais que têm importância é fraca, sua reputação na “rua árabe” está em frangalhos. Um Congresso liderado pelos republicanos não pode endossar os gastos com o conflito sem fazer cortes compensatórios de impostos domésticos com impacto nas receitas internas.

A força naval que os EUA mandaram para o Mediterrâneo oriental está lá para dissuadir a escalada do Irã e seus apoiadores, para tranquilizar os aliados na região de que será mantida a arquitetura fundamental: bases estadunidenses, postos de monitoramento e informações e acordos questionáveis com autocratas. Mas, nas fantasias sombrias dos islamistas radicais, agora é possível imaginar algo que o Ocidente havia tornado inimaginável: a derrota de Israel e o desaparecimento da vontade dos EUA de lutar por ele.

Ordem em desintegração

As coisas não são como deveriam ser. Adolescentes sorridentes não deveriam rasgar cartazes de judeus sequestrados, citando Frantz Fanon, presidentes americanos não deveriam incitar insurreições domésticas. Kharkiv, Kherson e Odessa deveriam ser nomes associados aos horrores da Segunda Guerra Mundial, não ao presente.

Estamos vivenciando a desintegração de uma ordem. Com isso, a capacidade dos especialistas de explicar a situação também está se desintegrando.

Quando participo de seminários com especialistas sobre Oriente Médio e observo sua súbita exasperação e desespero, a situação parece nova para eles, mas não para mim. Em fevereiro de 2022, participei de seminários com especialistas igualmente famosos sobre a Rússia e vi que suas antigas suposições sobre o presidente Vladimir Putin e sobre o putinismo também se evaporaram.

Recuando ainda mais, eles me recordam os economistas e funcionários públicos com quem trabalhei durante a crise financeira global de 2008. De repente, todo o seu conhecimento se tornou relevante somente para aquilo que o romancista Stefan Zweig chamou pungentemente de “o mundo de ontem”.

Debate infrutífero

Portanto, a luta mais abrangente é pela compreensão. Somente quando conseguirmos definir o quadro em que estão acontecendo essas mudanças, compreendendo a totalidade dessas crises interligadas, poderemos planejar a ação necessária para defendermos o que deve ser defendido.

No entanto, nas relações internacionais, estamos presos a um debate infrutífero entre o “realismo” e o “idealismo”. Nem mesmo é um debate, trata-se apenas de afirmações mútuas de premissas incompatíveis. Se um lado estiver certo, milhares de doutorados e cátedras do outro lado se tornam inúteis.

Para avançar, Benjamin Tallis, do Conselho Alemão de Relações Exteriores propõe o “neo-idealismo”, que reafirmaria os princípios humanitários e universalistas sobre os quais as Nações Unidas foram fundadas em 1945 e que estão na base da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – apenas desta vez sem concessões a ditaduras do “nosso lado” da divisão geopolítica da Guerra Fria.

Tallis cita uma nova geração de líderes políticos, incluindo Kaja Kallas, Sanna Marin e Volodymyr Zelenskyy, como incorporando esse novo espírito, enquanto lamenta a persistente conivência do chanceler alemão, Olaf Scholz, e do presidente francês, Emmanuel Macron, com as realidades do poder russo.

Se eu fosse me posicionar nesse debate, eu diria que sou um idealista em um mundo realista. Eu desejo uma ordem global baseada em regras, um conceito universal de direitos humanos e um corpo de leis internacionais que coloque o ser humano individual no centro. Mas eu sei que a ordem existente está se desintegrando.

Competição sistêmica

Há, para usar uma metáfora de Karl Marx, uma superestrutura legal e geopolítica que já não pode ser sustentada por sua estrutura econômica subjacente, que se quebrou. A economia mundial está se desglobalizando em esferas rivais. O espaço de informação global está se tornando fragmentado; Rússia e China lançaram uma competição sistêmica contra o Ocidente e estão recrutando com sucesso oligarquias e democracias em declínio para seu projeto.

É claro que devemos manter uma luta na retaguarda para assegurar as instituições globais – desde a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, sob grande pressão em Gaza, até o Tribunal Penal Internacional que poderia investigar crimes de guerra perpetrados lá – assim como nossos antecessores fizeram na década de 1930 com a Liga das Nações em colapso. Mas temos que reconhecer a desintegração que mina suas bases.

A pergunta que devemos fazer não é “como manter a antiga ordem mundial”, mas a que John Maynard Keynes no Tesouro Britânico e seu homólogo americano, Harry Dexter White, fizeram em 1943-44: como o mundo deve ser quando ganharmos? Embora o “nós” agora tenha que ser o povo de todo o mundo, não apenas “o Ocidente”.

Na década de 1930, quando o líder trabalhista britânico Clement Attlee abandonou o pacifismo e a “não intervenção” na Guerra Civil Espanhola e passou a apoiar ativamente o rearmamento, ele insistiu que o objetivo de qualquer coalizão de guerra com seu colega conservador Winston Churchill seria um “governo mundial”.

A conquista de René Cassin na elaboração da declaração universal foi o resultado de 20 anos de estudos jurídicos, nos quais ele e outros estabeleceram não apenas o idealismo, mas o realismo da afirmação de que a “pessoa humana” deveria estar no centro do direito internacional, não o Estado, para que o indivíduo pudesse fazer valer seus direitos. O mundo pós-1945 foi, em resumo, o produto de visões cultivadas por muito tempo na jurisprudência, na economia e na geopolítica.

Mudança no centro de gravidade

Não quero um retorno ao mundo unipolar do poder dos EUA, nem um multilateralismo que deixa mais da metade da população mundial na pobreza e escravizada a ditadores. Qualquer ordem legal emergente deve se basear no reconhecimento de que o centro de gravidade do mundo se deslocou para o Sul.

Em 1948, havia 2,7 bilhões de pessoas no mundo; hoje são oito bilhões. Em 1948, quanto a Ásia tinha a maior população, a Europa vinha em segundo lugar; hoje, a África está em segundo lugar, mas tem pouca influência no sistema internacional.

Se parece que alguns no Sul global estão dispostos a apoiar ditadores como Putin e o antissemitismo grosseiro que vemos nas “mídias sociais”, é porque não gostam da ordem global existente e querem uma nova. Portanto, o novo multilateralismo deve ser criado junto com as tradições progressistas e humanistas da China, do subcontinente indiano, da África e da América Latina, ao lado das tradições do Ocidente. Ele precisa se basear no conhecimento de todos e incorporar seus valores – mas precisa reafirmar o universalismo e se manter coeso.

Os aliados da guerra demoraram quase uma década para formular uma visão do mundo no pós-guerra. O que faz a grandeza desta geração é que eles fizeram tudo isso enquanto enfrentavam as agonias quotidianas e os desafios técnicos da guerra.

A lição que devemos tirar da forma como a ordem pós-1945 foi criada é que ela exigiu um esforço intelectual, durando décadas e demandando inovações críticas ao pensamento legal, político e econômico ocidental – muito antes de serem implementadas e virarem leis e instituições. (Publicado originalmente no Social Europe.)

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Tradução e Revisão: Celia Bartone

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