“In this house…”, com essas três palavras inicia-se um desses inúmeros filmes de horror cujo tema são as indefectíveis casas. Por isso eu as escolhi para começar esse artigo: neste palácio…
Digo, à porta deste determinado palácio o anfitrião recebe um a um dos convidados e os recepciona calorosamente. São 27. E a cada um indica a porta de entrada enquanto aguarda a chegada do próximo numa cronologia ensaiada, quase marcial. Segue o protocolo, mas finge atuar com naturalidade. É tão convincente quanto possível. Trata-se de um aprendizado secular e talvez tenha a ver com a tradição do lugar.
De todo modo, a recepção está marcada pelo simbolismo. Aquele palácio é Versalhes, a imperial construção do Rei Sol (Luiz XIV). Palco tradicional das cerimônias que mais importam ao Estado francês, me dizem. Ali viveu Maria Antonieta, a austríaca. E ali vivia também, é claro, àquele tempo, seu esposo, o rei Luiz XVI. Viveram lá um feliz matrimônio até serem capturados e executados pela revolução que, de uma ou outra forma, dá início ao mundo moderno.
Naturalizada pelo peso do status quo e das conveniências políticas, a imagem da recepção pode ser digerida, ainda que traga embutida na sua moldura a memória do desprezível.
Claro, não há francês que não se orgulhe da sua Revolução, afinal é um patrimônio histórico deles, mas também nosso, de toda a humanidade. Os alunos, sejam de onde forem, de que país ou continente, todos algum dia se alfabetizaram ou se alfabetizarão (ao menos enquanto houver alfabetização) e aprenderam ou aprenderão sobre a queda da Bastilha, sobre Danton e Robespierre, sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sobre o Diretório e a guilhotina, sobre a rainha e o rei levados ao cadafalso e sobre o palácio onde viveram até serem capturados pelo povo enfurecido, condenados pela Assembleia e guilhotinados.
E, 200 anos depois, sob as luzes de um mundo mais que moderno, aqui o temos de novo. Numa fria manhã do inverno de 2022. Uma sexta-feira, 11 de março, se não me falha a memória. Décimo sexto dia da guerra que não muito distante dali encosta na Europa nascida da guilhotina.
A Revolução, aquela que pôs fim à monarquia dos Bourbons (os moradores daquele palácio) e deu também início ao fim das monarquias, em breve vai consolidar o conceito de Estado Nação. Será também a parturiente de Napoleão Bonaparte. Dois mundos rapidamente se enfrentam, dois tempos históricos que se misturam antes de desaparecerem, fundidos em novas formas. O choque é tremendo. Do mundo moderno, nascido do sepultamento dos que habitavam Versalhes, emergirão também os novos impérios. E as guerras serão inigualáveis.
Estranhamente em Versalhes, reunidos ao redor das mesas de banquetes nos salões da residência símbolo da monarquia, numa esplêndida encenação para as arquibancadas, os cordiais senhores da Comunidade Europeia armam sua ofensiva para forçar que o diabólico inimigo recue.
Orgulhosos herdeiros da Revolução, graves e compenetrados, se reencontram com a difícil tarefa de enfrentar a ameaça da eternamente inconquistada terra eslava. A indomável mistura de povos que no terrível inverno que os agasalha interrompeu a marcha civilizatória do exército de Napoleão e o fizeram retroceder, fraquejar e, afinal, ser batido pelos conterrâneos e vizinhos para restabelecer o poder monárquico. Logo posarão para a fotografia alinhados ao pé da escadaria versaliana como paladinos da justiça, da paz e do bem estar universal. Liberais, social-democratas, verdes e tutti quanti, capitaneados pelo onipresente chefe que, no entanto, prefere se manter longe dos holofotes, do outro lado do Atlântico. Mas não há paradoxo, é apenas o protocolo. Além de um invisível sarcasmo.
Enquanto enviam armas e atiçam os brios bélicos, pretendem convencer que são a própria encarnação da pomba da paz e o invasor o huno feroz. Não faz muito sentido, mas pouco importa. A free press está 100% a serviço do discurso oficial decretado no palácio. Na realidade, são bem poucas as vozes que desde o princípio de fato se opuseram e seguem se opondo à guerra.
Semana passada, Oskar Lafontaine, um dos fundadores do Die Linke (A Esquerda) na Alemanha, publicou no seu blog uma carta rompendo com o partido que ajudou a fundar. Entre os motivos estava o apoio à “moção do Governo (social-democrata) que defendia o aumento do gasto público com defesa e o envio de armamento para a Ucrânia”. Encerrou o texto dizendo: “Não quero pertencer a um partido em que o interesse dos trabalhadores… e uma política baseada no direito internacional e na paz já não são centrais…”.
Lafontaine não é um joão-ninguém da política alemã, ao contrário, durante o governo do duríssimo democrata-cristão Helmut Kohl, foi o homem que resistiu na presidência do SPD até retomar o comando do país para os social-democratas, nas eleições de setembro de 1998. Segue sendo uma das mais respeitadas lideranças políticas da esquerda europeia. Mesmo assim, a paz defendida por Lafontaine (e por mais meia dúzia), e definitivamente não pelos 27 de Versalhes, é simplesmente ignorada pela mídia.
A imagem do inimigo
Na outra parte da encenação, sentam-se para fabricar a imagem do inimigo. Numa operação implacável e de grande porte, querem fazer crer que Vladimir Putin é o anticristo, o bárbaro em armas contra o mundo civilizado – nós, naturalmente, nós, os anjos inocentes que vivemos sob manto protetor da Armada do Império. O doce Império. Na maior cara lavada, “criminoso de guerra”, disparou o presidente americano e logo se colocaram em marcha seus fieis operadores, replicando o comando para a nova ofensiva.
O arsenal mobilizado contra Putin tem de ser infinitamente mais amplo e eficaz que contra Saddam Hussein, até porque em nenhum sentido, real ou figurado, Putin pode ser comparado a Saddam. Pode ser que muito convenientemente a grande audiência o ignore, mas os mass media o sabem perfeitamente. E assim segue o intenso bombardeio, sem trégua. Não há necessidade de provas (sequer de bom jornalismo) para confirmar o slogan da campanha decretada por Washington, embora haja meios abundantes para produzi-las – se existissem.
Os nossos refugiados de guerra e os outros
Impossível não notar a extraordinária capacidade de recepção aos mais de 3 milhões de refugiados da guerra, destacadamente por alguns dos sócios mais pobres da União Europeia, Romênia e Polônia, dois dos quatro países pertencentes à entidade que fazem fronteira com a Ucrânia.
Num piscar de olhos (pouco mais de 15 dias), uma impecável rede de apoio e de campos de refugiados foi montada para recepciona-los. Em algumas cidades aqui da Espanha até bandas de música foram mandadas para dar as boas vindas. Tratamento VIP. (É parte do pacote de marketing, do jogo de cena dessa guerra onde entre os principais protagonistas estão personagens como Elon Musk e Mark Zuckerberb, Master Card, Mc Donald’s e NetFlix. O trágico se mistura ao patético para produzir doses pantagruélicas de obscenidade, e não há o que fazer.)
Sem delongas, a Polônia determinou que os refugiados podem permanecer legalmente no país durante 18 meses, prorrogáveis a três anos, a Itália destinou 400 milhões de euros para ajuda direta, a França subsídios de 426 euros mensais para cada indivíduo, além do direito à assistência médica gratuita, a Espanha papéis de residência em 24 horas. Muito justo, evidentemente.
Mas como não lembrar do acanhado e resistente auxílio aos refugiados da guerra da Síria? Ou das pretas e pretos que tentam aportar nas praias da Europa em botes clandestinos, algumas dezenas, centenas, quem sabe uns tantos milhares, fugindo da miséria e das inúmeras guerras que dilapidam a África? E que são rechaçados ou recebidos a pontapés como portadores da praga. O contraste é abismal. E pode ser, portanto, que a um ou outro de nós soe indecente.
Mas não, ninguém até agora, digo, nenhum jornal, nenhuma TV, organização humanitária etc, literalmente ninguém sequer notou. E como poderiam? Porque o mal (e o inimigo a ser varrido do mapa) é apenas o outro, unicamente o outro. Do contrário o discurso todo deixa de funcionar.
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Ilustração: Mihai Cauli
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