Por Luiz Marques: Falta à democracia brasileira tempo para desenvolver uma cultura que não privilegie os direitos particulares, em detrimento dos coletivos. O hiato explica por que os negacionistas se recusaram a tomar a vacina, na pandemia. Assim, puseram em risco a saúde da população, além de suscitar a desconfiança sobre os imunizantes testados cientificamente. O ceticismo atinge, agora, outras campanhas de vacinação (poliomielite, varíola, sarampo). Roberto Jefferson levou ao extremo o conceito de liberdade individual, na versão de desobediência civil típica de um bolsonarista: usou tiros de fuzil e granadas contra policiais que cumpriam o mandado de prisão do Judiciário. A reação acompanha o kit dos ataques fanatizados às instituições republicanas. Mas você não se importa.
É difícil respeitar alguém que cala diante do elogio a torturadores e a milicianos, bem como do estímulo à violência racista, sexista, misógina e homofóbica. Brutalidades incompreensíveis até no Primeiro Testamento; imagine no Segundo Testamento bíblico, que celebra o Deus do amor e da misericórdia. Impossível conciliar tantas covardias e preconceitos com os ensinamentos de Jesus. Um cristão jamais diria “prefiro um filho morto a um filho gay”. Naturalizaria a absurdidade, seria um hipócrita fariseu, um simulacro de pai. A intolerância é bruta. Mas você faz cara de paisagem.
É de amplo conhecimento que um conluio midiático-judicial pretextou a corrupção para destruir as empresas nacionais de engenharia e preparar a privatização da Petrobras e do pré-sal, atendendo aos interesses das grandes corporações estadunidenses. Os interesses nacionais e a soberania popular foram fraudados pelo procurador embusteiro e pelo juiz parcial. Ambos eleitos, respectivamente, para a Câmara Federal e o Senado. As urnas mediram o grau avançado de degeneração do tecido social. O rentismo financeiro, o trabalho sem proteção e a concorrência entre os trabalhadores dilapidaram as estruturas clássicas do próprio capitalismo. Mas você crê em Mises acima de tudo.
Apesar das “rachadinhas” nos gabinetes e dos “rachadões” no orçamento parlamentar secreto; da compra em dinheiro vivo de 51 imóveis e do sigilo de 100 anos sobre gastos no cartão corporativo presidencial; não à toa, hoje, a família no poder recebe adesão dos falsos ex-agentes da Justiça. O argumento de combate à corrupção tinha uma finalidade política. A filósofa Márcia Tiburi fala de lavagem cerebral na classe média e culpa a Lava Jato e os meios de comunicação. O economista Márcio Pochmann considera que as causas estão na desindustrialização e na inserção subordinada da nação à globalização. O aparato constitucional falhou. Mas você não contextualiza os fatos.
Ficaram para trás os axiomas da economia sustentável. Os óculos de armação em madeira reciclada e as pranchas confeccionadas no mesmo material, para difundir a consciência ecológica entre a juventude adepta da prática do surfe. Depois, veio o silêncio sobre o extrativismo, a mineração em terras indígenas, o desmatamento, a madeira exportada de forma ilegal, a fumaça das queimadas da Amazônia no céu de São Paulo. A seguir, o comportamento de pedófilo da alta autoridade, ao fantasiar meninas venezuelanas em um prostíbulo inexistente. Mas você acha infalível o Führer.
A campanha pela reeleição se ampara em dinheiro público e privado. O jornal Valor Econômico calcula em R$ 68 bilhões o assalto aos cofres da União. Nunca houve campanha eleitoral tão suja. Empresários cabresteiam votos com chantagens sobre a empregabilidade. Tratam funcionários como parte da mobília na empresa. A Internacional Patronal é iletrada, corrupta e antidemocrática. Tem tatuada na alma a soberba herdada do período colonial. Carece de projeto para o país. Avalia o precariado atual como os negros escravizados, sem direito a ter direitos. Para o professor Fernando Abrucio: “O bolsonarismo (leia-se a fusão do neoliberalismo e o neofascismo) é a vitória final do modelo escravocrata”. Uma completa regressão civilizacional. Mas você mira no TSE e no STF.
A chance de reencontrar a “pessoa do bem” que você pensa que é, tem data: 30 de outubro. Liberte o jovem que sonhava com a sociabilidade do Estado de direito democrático, e condenava o Estado de exceção. Esse que anda com ar blasé, indiferente ao sofrimento do povo, contando o vil metal, perdeu o coração em alguma curva da estrada. Tomara que, das cinzas como Fênix, renasça em você o “rebelde do contra” para ocupar o lugar do “rebelde a favor” das injustiças. Mas você será capaz?
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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