De dia, aquele prédio era um marco de arquitetura de gosto duvidoso e imponência evidente. Um espigão envidraçado cravado entre ruas apinhadas de gente apressada em seus vai e vens e carros bacanas com gente igualmente apressada dentro, mas parados em engarrafamentos de aparência infinita.

À noite, as ruas se esvaziavam e o agito do dia dava espaço a viciados de toda espécie que se aglomeravam em pequenos grupos secos por crack. Às vezes, Selic saía tarde do trabalho e via por detrás dos vidros blindados de seu carro a aglomeração de pessoas que lhe lembravam aqueles zumbis de filmes. Como nos filmes, pensava em estourar-lhes as cabeças com uma escopeta. “Seria muito mais fácil, rápido e barato resolver assim…”, divagava consigo mesmo.

Sua cabeça funciona buscando jeitos de fazer as coisas de maneira mais fácil, rápida e barata. Como todos que são formados no estrangeiro, é considerado uma assumidade de razão e lógica. Um calculista infalível dos dinheiros a se ganhar ou se perder.

No banco em que trabalha, é chamado de analista de mercado. Vive atento a gráficos, planilhas, números e informações sobre dinheiro e política. Junta tudo e, sem uma única conta no papel, afirma: o dólar vai subir.

– Vamos comprar, então! – Antecipa-se um diretor.
– Ainda não, melhor esperar mais um pouco… – Sugere Selic.
– Mas, por que?
– Ainda vai cair.
– Mas não ia subir?
– Só depois de cair mais. São os números…

Os responsáveis por tudo são sempre os números no mundo de Selic. Pessoas sensatas são sensatas porque se rendem ao que os números dizem e, como os números não falam sozinhos, Selic trata de dizer a todos o que vê dito nos números. Não faltam jornalistas que o consultam para saber se os números acham bom ou ruim algum acontecimento. No mundo dos sensatos de Selic, valores morais são definidos a partir dos números sobre dinheiro que se pode ganhar e dinheiro que se pode perder.

Dar tiros nas cabeças daquela gente zumbizada da cracolândia seria bom. A sociedade gastaria menos com doenças e segurança. O prédio se valorizaria. Ele ganharia um adorno urbano que combinaria mais com sua luxuosa suntuosidade. Seria definitivamente bom. Os números não mentem.

Apesar de não calcular, suas previsões numéricas são escritas. Um problema para Selic. O futuro lido nos números é sempre certo e preciso enquanto o futuro não chega. Só enquanto o futuro não chega. Quando ele chega, insiste em trazer outros números. É quando os cálculos de Selic são revistos.

Lendo os escritos de Selic e comparando com suas projeções, um sujeito, calculista como ele, apresentou números que mostravam que os números de Selic estavam quase sempre errados. Dependendo de quem governasse o país, seus cálculos erravam sempre para menos ou sempre para mais.

Um novato no banco, vendo os erros de Selic, perguntou se seria mesmo sensato seguir cálculos que sempre erram. Riram de sua ingênua insensatez de noviço.

Coube a um engravatado mais paciente explicar ao menino.

– Os números de Selic não são sobre como as coisas serão. Eles fazem as coisas acontecerem. Quando diz que algo vai acontecer, essa coisa começa a acontecer, entendeu? E é aí que nós ganhamos dinheiro. Nós não esperamos as coisas acontecerem, nós as fazemos acontecerem.
-Mas os números…
-Sim, os números não mentem, mas nós…

Selic deu uma enorme gargalhada quando lhe contaram sobre a conversa com o novato. Demorou um tempo para recuperar-se e mostrar a todos os números que realmente importavam, os lucros. Sempre positivos, sempre felizes. Foi aplaudido.

Saiu feliz do prédio naquele dia. Orgulhoso de seus números e de suas verdades. Mal se entristeceu com a visão dos viciados. Apenas irritou-se com o fato de que as autoridades não ouvissem também a verdade de seus números sobre como resolver o problema daqueles zumbis nas ruas.

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Ilustração: Mihai Cauli
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