Conheço uma trabalhadora, da faixa dos 50 anos, que sempre trabalhou na indústria de confecção como costureira. Negra, com quatro filhos sendo três crianças, atualmente solteira.  Nascida e criada em favela, hoje divide com a mãe idosa – aposentada com renda mínima pelo INSS – uma casa alugada, no interior profundo da Baixada Fluminense. A mãe cuida das netas enquanto ela trabalha. Há um ano a casa que haviam comprado no mesmo bairro fora submersa numa enchente e perderam absolutamente tudo!

Agora, há pouco tempo, ao final de uma tarde, enviou-me um pedido urgente pelo zap. Transcrevo:

“(…) Seu Alfredo boa noite! Tudo bem como vai o senhor!

Eu queria ver com o senhor se o senhor poderia me emprestar 200 reais se o senhor puder aí dia 5 quando eu receber eu pago o Senhor! É para eu pagar o carro pipa pra encher as vasilhas de água aki (sic) em casa estamos sem água novamente!”

De imediato fiz o pix. Quanto à falta d’água, nada novo do que se vê diariamente na TV sobre as empresas de águas e saneamento.

O que ocorreu desde 2021, com a privatização parcial da Cedae, empresa pública de águas do estado do Rio de Janeiro?

O site da organização “Casa Fluminense”, 30/04/2022, em extensa matéria sob o título “Leilão da Cedae completa um ano sem propor mudanças nas periferias”, informa:

“(…) Com valores históricos, a empresa pública Cedae teve parte do seu serviço privatizado em um leilão que rendeu aos cofres públicos [outorga] 22 bilhões de reais. A venda também previa um investimento de 30 bilhões de reais feito pelas novas empresas em melhorias no saneamento básico no Rio de Janeiro. Os valores impressionam, mas também acendem um alerta para organizações da sociedade civil que monitoram o saneamento básico. Do montante recebido pelo poder público fluminense, o governo do estado ficou com 14,4 bilhões. Os outros 7,6 bilhões serão distribuídos aos municípios que aderiram ao plano (…)”.

“(…) Esse tipo de situação se repete em outros pontos do Rio, regiões que já sofriam com atendimento precário de saneamento, agora relatam uma rotina de falta de água constante.” A educadora da Fase RJ, Caroline Rodrigues, explica que esse é um dos efeitos diretos da privatização.

Apesar do acesso à água ser uma necessidade humana básica, empresas privadas querem lucro, só isso. Elas seguem a lógica de mercado e não de saúde pública, então se puderem diminuir seus gastos, investir menos… As prioridades serão as áreas com maior rendimento. E uma coisa precisa ser dita sobre a Cedae, ela não cortava água. Podia até não fornecer, mas o corte de água nunca foi expressivo na Cedae. Agora, com empresas privadas no comando, vão ocorrer cada vez mais cortes de água volumosos (…)”.

A distribuição prevista dos valores da outorga segundo os municípios participantes (Região Metropolitana) era então a seguinte:

O importante da situação é que tais recursos municipais – da outorga –  nem sequer deverão ser revertidos em água e saneamento, mas sim em outras destinações públicas. Aqueles investimentos no setor da água e saneamento deverão ocorrer mediante aqueles já citados aportes de 30 bilhões de responsabilidade das novas distribuidoras.

Como esclarece, prosseguindo, Carolina Rodrigues (da Fase):

“(…) esse dinheiro corre risco de ser usado para fins políticos, já que a  venda não prevê vinculação dos valores recebidos.”

“Falta transparência tanto no âmbito estadual quanto municipal de como vão investir esse dinheiro. Esse recurso da outorga deveria ter um código específico no orçamento para que fosse possível haver controle social. Se os municípios não têm esse código, esse montante entra e não se sabe para onde será encaminhado. O risco é que esse recurso, em um ano de eleição, seja usado para financiar campanhas políticas e até grupos paralelos.”, explicou a especialista.

Se há uma expectativa de que com a entrada desses valores haja um aumento de investimento no setor de saneamento básico, Rodrigues alerta que é preciso cobrar que quem faça essas obras sejam as empresas. Segundo ela, o poder público tem que investir o valor recebido em outros setores.

“Esses recursos das outorgas estão para além do saneamento básico. Já que decidiram vender um patrimônio público, o mínimo a ser feito agora é reverter esse recurso para o público e não para o privado. Esse dinheiro deveria estar sendo usado em melhorias estruturais das cidades, mas falta controle.

Não estão facilmente disponíveis os investimentos das distribuidoras, mas há estatísticas abundantes sobre as reclamações da população. É o que mostra ilustrativamente a figura a seguir:

Agora, para finalizar, meu caso.

Moro em bairro da Zona Oeste da capital constituído praticamente só de casas. Devido ao aumento da população, predominantemente proletária, a água frequentemente já não tem pressão para alcançar as caixas d’água.

Alguém por aqui acredita que a concessionária privada (“Rio Mais Saneamento” – ver na figura acima, a de menor percentual de casos resolvidos) algum dia investirá na expansão? Ou, se investir, quanto e quando?

Os moradores que podem, eu inclusive, estão colocando caixas d’água ao nível do solo, funcionando como cisternas e elevando a água por bombeamento. Aos que não podem, e geralmente pagam aluguel, resta se mudarem.

Em suma.

Sinto-me cada vez mais como o Dr Ulisses Guimarães: “Ódio e Nojo”!…

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
Leia também “Trabalhadores”, de Julio Pompeu.