O Brasil tem uma democracia adolescente, com ideias contemporâneas assimiladas das melhores práticas em outros países do mundo. Mas, por outro lado, na saída dos tempos de ditadura, depois de duas décadas de regime militar, as lideranças democráticas negociaram uma transição que pretendeu acontecer sem traumas, o que manteve no texto constitucional e na malha legislativa ordinária algumas peças do passado autoritário. Foi o caminho possível para anular a pressão que vinha dos porões da ditadura, daqueles contra a abertura, como o coronel Ulstra e seus parceiros, mesmo DNA do atual presidente da República.

Essa juventude da democracia traz consigo muitas imprecisões legais e exige a formação de blocos para chegar a novos consensos e a novas disputas. Estas fragilidades, no entanto, nunca ameaçaram a democracia. A história colocou no caminho da jovem constituição dois processos de impeachment a presidentes eleitos, testes consideravelmente complexos ao regime democrático, que respondeu bem. A destituição de Dilma Rousseff, por exemplo, não teve nada a ver com crime, foi resultado do enfraquecimento político, que no presidencialismo não justifica o golpe parlamentar da oposição. Mesmo assim, a democracia não esteve ameaçada.

Os acontecimentos de 2016, vistos por um ângulo mais aberto, mostram que a democracia mandou a cobrança para os partidos que lideraram a deposição, os quais viram muitos de seus votos migrarem para o PSL de Bolsonaro.

Uma combinação de vetores, alguns deles iniciados em 2013, colocaram Bolsonaro à frente já no primeiro turno das eleições presidenciais de 2017, com 43% dos votos, que subiram para 55% no segundo turno. Sua eleição foi o resultado de um conjunto de aspirações de segmentos heterogêneos de eleitores. Mesmo sendo político há três décadas, convenceu os eleitores tratar-se de um candidato contra o sistema. O fracasso das candidaturas dos partidos tradicionais, de centro e direita, o colocou como o único capaz de derrotar o petismo e trazer de volta a segurança, os bons costumes da família e da tradição.

Hoje, muitos de seus eleitores desembarcaram ao perceber sua recorrente postura autoritária e abertamente contra o sistema democrático desenhado na Constituição. Outros o abandonaram pelos seus fracassos no combate à Covid-19 e na execução de políticas econômicas mitigadoras do desastre depressivo.

De maneira geral, a sociedade começou a perceber a essência da proposta bolsonarista, que é antes destruir do que aperfeiçoar o sistema e suas instituições.

A afirmação contundente merece uma reflexão mais pausada, quase um artigo para si, inviável neste espaço, mas pelo menos algumas palavras são necessárias para compreender as atitudes do presidente e seus filhos. Consegui entender melhor o sentido da destruição na construção política enquanto assistia o documentário original Netflix “Privacidade Hackeada”, e Christopher Wyle, cientista de dados da Cambridge Analytics chamou minha atenção ao mencionar a “Doutrina Breitbart”, segundo ele a raiz do pensamento da extrema direita contemporânea.

Breitbart é o nome de um site de notícias de extrema direita, criado em 2007. Steve Bannon foi um dos seus principais formuladores, ao tempo em que fundava a Cambridge Analytics, da qual se tornou vice-presidente.

No depoimento de Christopher Wyle, no processo contra a Cambridge Analytics, ele resumiu a doutrina da seguinte forma: “se você quiser mudar fundamentalmente a sociedade, primeiro tem de destruí-la. Somente depois de destruí-la é que se pode remodelar os pedaços segundo sua visão de uma nova sociedade”. A Cambridge foi criada para ser a artilharia na guerra cultural da extrema direita.

Marcos Nobre, no seu livro “Ponto Final”, alerta aos que se surpreendem com o comportamento presidencial, com a falta de capacidade do governo governar e com as atitudes no sense dos ministros. “Este é o plano”, explica o autor.

Steve Bannon, um dos amigos (?) da família Bolsonaro, talvez seja o mais conhecido ideólogo desta arquitetura da destruição, título usado propositalmente numa referência meramente ilustrativa ao documentário do sueco Peter Cohen, de 1989, no qual há uma exposição brilhante do projeto nazista de aniquilação da estética e sentimentos do passado, para construir uma alternativa que seja a expressão do nazismo. Ideias, aliás, presentes também no livro autobiográfico de Albert Speer, o arquiteto de Hitler.

Alguns apoiadores entraram no campo da dúvida. Na medida em que percebiam que Bolsonaro veio apenas para destruir, para mostrar que a administração pública que está aí não serve, mostra-se uma caixa de propaganda do marxismo. A transparência com que o governo tentou tudo para impedir o funcionamento do Ministério da Saúde é um caso exemplar. O mesmo vale para educação, para o meio ambiente, para as relações exteriores, todos voltados para anular o avanço das últimas décadas.

Nos últimos meses, vozes de importantes instituições do sistema democrático subiram o tom na defesa da democracia. São muitos os exemplos, mas elas estão no Supremo Tribunal Federal, no Congresso Nacional, em algumas das grandes redes de comunicação e jornais do país, CNBB, OAB, entre outras.

A pesquisa Datafolha de junho registrou o aumento na rejeição ao atual governo, que passou a ser de 44% da população, quase 10 pontos percentuais de crescimento nos seis primeiros meses deste ano. Porém, há uma relativa estabilidade em torno de 30% da população, entre os que consideram o governo ótimo e bom.

A perda de apoio acendeu o sinal de alerta, mesmo para um governo mais interessado na destruição e no seu terço do eleitorado. A partir daí, Bolsonaro adotou uma estratégia conhecida nos manuais de guerra como “cabeça de ponte”. Para os que não conhecem a terminologia militar, a ideia é ocupar solidamente uma posição em terreno inimigo, em geral para solidificar a posição, acumular forças e voltar a atacar.

Não sabemos o quanto Bolsonaro aprendeu sobre táticas e estratégias militares, antes do processo que o colocou para fora do exército. Mas sua estratégia, desde o início, focou na solidificação de uma cabeça de ponte na democracia, seu alvo, e consolidar seus 15% de fiéis, que somados a outros, alcançam os 30% de ótimo e bom das pesquisas.

As instituições da República, no entanto, têm mostrado força para impedir a expansão bolsonarista. Erros do invasor, acertos das forças da democracia entrincheiradas, o fato é que ele viu o perigo de romper algum flanco e, antes disso, suspendeu o ataque e concedeu alguns territórios em troca de apoio contra o impeachment. A situação é de pausa. Se fosse um contexto estritamente militar, diante do recuo do governo, as forças opostas avançariam até a rendição do inimigo da democracia.

Mas é deste jogo de guerra que depende a sobrevivência da democracia brasileira, ela será capaz de sustentar-se até as próximas eleições? Qual será o custo social e de vidas enquanto estivermos com um governo mais interessado em destruir as bases da organização do Estado e a capacidade de governar com democracia? Quanto tempo será perdido, antes de passarmos a ajustar a economia e retomar o crescimento da produção e do emprego? O fato é que a boiada continua passando, enquanto o governo dirige o país em direção à barbárie.

A oposição a Bolsonaro não parece disposta a mudar agora. Em parte, porque deputados do Centrão, até agora na oposição, aceitaram negociar espaço (cargos) no governo, em troca de apoio para impedir as tentativas de impeachment. Por outro lado, os que como o PSDB, defendem a democracia, mas não se declaram oposição ao governo autoritário.

Alguns, da esquerda, têm responsabilizado injustamente a própria esquerda por não conseguir unir-se para liderar o processo. Uma justa avaliação, no entanto, mostra uma crescente rejeição da sociedade a Bolsonaro, mas não uma disposição por mobilizar-se e ir às ruas.

Por enquanto, tudo indica, a população está deixando a decisão para as urnas de 2022. E nas urnas existe a quase certeza de que Bolsonaro terá pelo menos 1/3 dos votos e estará no segundo turno contra alguém. No caminho, há inúmeras incertezas, mas é certo que a democracia estará em risco. A necessária reunião de forças para derrotar o projeto de destruição não será um processo natural, como o de um rio correndo para o mar. Estará repleto de alicerces programáticos e ideológicos que deverão ser protegidos, mas contornados, para que o rio deságue na democracia.