A justiça equatoriana confirmou quarta-feira, 23 de setembro de 2020, a sentença que condenou o ex-presidente Rafael Correa, exilado na Bélgica, a oito anos de prisão por corrupção, além de destituí-lo vitaliciamente de seus direitos políticos. Assim, se reafirma a nova modalidade de golpe na América Latina contra qualquer dirigente com apoio popular que ouse desafiar as classes privilegiadas internas e a sacrossanta ordem estabelecida pelo imperialismo estadunidense desde o século XIX. Processo similar foi utilizado contra Manuel Zelaya, nas Honduras (2009), Fernando Lugo, no Paraguai (2012), Dilma Rousseff, no Brasil (2016), e Evo Morales, na Bolívia (2019). Nova roupagem em velhos hábitos. Nas palavras do secretário de Estado Richard Olney, em 1895: “hoje em dia os Estados Unidos são praticamente o soberano desse continente e suas ordens são lei para os súditos aos quais se aplica sua intervenção” – uma livre interpretação da chamada Doutrina Monroe, que originalmente dizia que os EUA não permitiriam que a independência das repúblicas latino-americanas fosse atacada.

As políticas do Big Stick (Grande Porrete), sob as quais padeceram os países da América Central e Caribe até 1929, como se viu nas ocupações militares estadunidenses na Nicarágua, no Haiti e na República Dominicana, foram substituídas após a II Guerra Mundial por formas indiretas de domínio, em que pese a consagração do princípio de autodeterminação dos povos definidos pela ONU e incorporados na Carta da OEA, por quarteladas, pela tolerância a ditaduras militares ou a ditaduras de famílias oligárquicas, pela ameaça recorrente aos governos eleitos em interregnos democráticos e a países que se libertaram de ditaduras pela via armada – caso da Nicarágua, entre 1979 e 1990. A Revolução Cubana vingou como exceção em um quadro geopolítico – o apoio da URSS foi decisivo no pós revolução – que conteve os apetites imperiais do Grande Irmão do Norte.

O lawfare, o uso abusivo e discricionário do aparato judiciário para derrubar governos legítimos e conter a possibilidade de uma real democratização, é apenas um aperfeiçoamento das formas de intervenção. Da Escola das Américas se passou ao treinamento de procuradores e juízes em seminários promovidos pelo Departamento de Justiça dos EUA. O que não impede, a depender do contexto nacional, que oficiais generais rosnem ameaças a tribunais recalcitrantes. Porém, a tentativa de um passo adiante foi dado nas formas de intervenção na América Latina: a possibilidade de conflitos armados entre países da região por procuração. Mergulhado em imensa crise fiscal, afogado na manutenção de seu império, tropeçando em como dividir os custos crescentes da máquina de guerra, enfrentando seu declínio gradativo como potência mundial, dada a emergência da China, o esforço yankee é de delegar o possível conflito com a Venezuela ao Brasil e à Colômbia, países governados pelos genuínos sátrapas ultradireitistas Jair Bolsonaro e Ivan Duque.

Também contam os interesses imediatos nas eleições presidenciais desse ano. O republicano Trump e o democrata Biden precisam, como de praxe, de um inimigo externo para captar votos. Trump, ao que tudo indica, é a favor (se possível) de guerra por procuração. Biden parece preferir aprofundar bloqueios que sufoquem a Venezuela. O patriotismo estadunidense anda meio raso, após os reveses na Síria e no Afeganistão e a ferida da derrota no Vietnã ainda está aberta. Vitórias apenas nos filmes de propaganda mal camuflados de Hollywood. Que morram cucarachas. Fornecerão armas, apoio logístico e orientação à distância segura. As despesas certamente serão divididas em nome da paz e da democracia.

A recente visita de Mike Pompeo, um ultra falcão trumpista, durou parcas horas no Brasil, em Bela Vista-Roraima, e tinha evidentes intenções eleitorais. Mas também foi uma forma de medir o clima beligerante e de subserviência na região. As reações fora das hostes bolsonaristas foram adversas às intenções do Secretário de Estado americano. O rechaço foi geral, ao ponto de se criar uma espécie de frente ampla entre liberais conservadores e a oposição em apoio a Rodrigo Maia, presidente da Câmara, que declarou que a visita, a 50 dias das eleição presidencial, não foi condizente “com a boa prática internacional”. A nota conjunta de ex-chanceleres em apoio a Rodrigo Maia criticou com veemência a visita “como provocação a uma nação vizinha… utilização espúria de solo nacional por um país estrangeiro”.

As declarações de Pompeo contra Maduro e a Venezuela foram interpretadas pelo chanceler Ernesto Araújo como erro de tradução, e emendou na sua defesa canina: o regime de Maduro é ilegítimo, a visita não tinha propósitos eleitorais e comparou o presidente a “narcotraficante”. Desde a posse de Bolsonaro as provocações têm sido recorrentes: na fronteira, por conta de refugiados, na ocupação por algumas horas da embaixada venezuelana em Brasília, na retirada de funcionários e diplomatas da embaixada em Caracas, no pedido para que diplomatas venezuelanos saiam do país, no reconhecimento de Guaidó, golpista contumaz, como presidente legítimo da Venezuela.

Um conflito aberto pode significar fuga para frente face às crescentes e previsíveis dificuldades do governo Bolsonaro. Se Trump vencer as eleições, talvez essa aventura tenha guarida. Mas não será um passeio. O exército venezuelano é o mais bem equipado da América do Sul, conta com apoio tecnológico russo, além da capacidade operacional das milícias bolivarianas equipadas com armamento leve. Mas não seria algo inusitado.

A ditadura brasileira, ao arrepio da Carta da OEA, apoiou com envio de tropas (1.130 soldados) a ocupação estadunidense da República Dominicana, entre abril de 1965 e outubro de 1966. Os EUA enviaram 42 mil fuzileiros e bloquearam o país com uma frota de 41 navios. Outros países participaram: Honduras, Paraguai, Nicarágua, Costa Rica e El Salvador. Todos, com exceção da Costa Rica, eram governados por regimes ditatoriais. O pretexto da invasão foi a sublevação de militares constitucionalistas com apoio popular que exigia o retorno de Juan Bosch, nacionalista eleito em 1962 e deposto em 1963. A derrota era previsível, tal a desproporção das forças. De qualquer forma, a resistência foi maior que o esperado. Em outubro de 1966, após eleições, assumiu o conservador Joaquim Balaguer. À época, Paulo Sarazate, deputado pela UDN, declarou que “para acabar com o comunismo naquela ilha, qualquer coisa é válida”. Hoje esse papel caberia a Eduardo Bolsonaro, atual presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara Federal.

Por enquanto os liberais conservadores mostram receio em se envolver em tais movimentos, enquanto procuram uma alternativa a Bolsonaro em 2022. E caso não encontrem nome alternativo viável preferirão flertar com o monstro que os devorará?

Caso ocorra o conflito, a América Latina internalizará um tipo de embate que por ora ocorre no Oriente Médio, onde os EUA estão em terreno inseguro no controle do fluxo petrolífero. O petróleo da Venezuela está próximo da costa leste norte-americana e as reservas são avaliadas como as maiores do mundo. O desdobramento desse tipo de conflito tem consequências imprevisíveis. A América Latina, como a conhecemos, provavelmente desaparecerá.

Richard Morse, autor de “O Espelho de Próspero – cultura e ideias nas Américas”, inspirado por “El mirador de Próspero” (1909), do ensaísta uruguaio Rodó, interpreta o personagem de “A tempestade”, de Shakespeare, como colonizador de uma ilha encantada, por extensão, “os prósperos” Estados Unidos. As Américas do Sul são vistas como “uma imagem especular” na qual a anglo América poderá reconhecer seus próprios problemas. Conforme seu entendimento, a anglo América experimenta uma crise de confiança. As fissuras já eram bem claras nos anos 1960/70, acrescente-se. Como imagem especular, aquilo que se denomina civilização ibero-americana poderia encerrar “alguma mensagem para o nosso mundo moderno”.

Mas a imagem não poderá ser apenas a universalização do horror entrópico no centro e nas margens do sistema capitalista? Em termos imagéticos, talvez seja mais adequado o quadro de Alfred Kubin, Ins Unbekannt, 1900/01 (“Rumo ao desconhecido”, em tradução um pouco livre), exposto no Museu Leopold, em Viena. Uma massa humana quase indistinta, anônima encaminha-se e adentra na bocarra de um monstro. Cabe-nos decifrar o monstro.