A derrota de Donald Trump abre um espaço para a reconfiguração de uma nova ordem mais democrática no mundo. Ao pensar-se os impactos das eleições norte-americanas para a América Latina e o Brasil é preciso não cair na análise fácil de que tudo continuará igual, ou de que haverá mudanças profundas. O artigo de Joe Biden na Foreign Affairs indica que vai haver um retorno da priorização de agendas como clima e democracia e continuidade nas pressões sobre a Venezuela e na contestação às entradas chinesas e russas. O que a derrota de Trump mostra de mais positivo é que o movimento global de extrema direita que, em um momento, havia se portado como se fosse imbatível não o é.

O Brasil está obstruído por uma gestão incompetente incapaz de propor alternativas de políticas públicas para enfrentar a crise econômica, social e sanitária. O resultado das eleições municipais, mesmo, com a derrota de Bolsonaro, não aponta uma tendência de sua superação definitiva em 2022. O segundo turno das eleições municipais reafirmou as principais tendências que já vinham, se configurando desde o início da pandemia: o fortalecimento do liberal-conservadorismo tradicional (Centrão e DEM) e o enfraquecimento nas grandes regiões metropolitanas das grandes forças políticas que se enfrentaram em 2018, o bolsonarismo (antipetismo) e o petismo.

O primeiro significado importante da derrota do bolsonarismo nas eleições de 2020 foi a perda do controle da agenda política do país. Não é mais hegemônico. A antipolítica não é mais o caminho para a vitória eleitoral. Isso não deve ser subestimado, pois indica que a agenda principal para 2022 não será a luta contra a corrupção. Ainda mais agora, que o justiceiro da moralidade abandonou o campo de luta e se transferiu para o lado da defesa de quem ele condenou como juiz.
Não é a primeira vez na história. Jânio Quadros e Fernando Collor também foram eleitos com a promessa antipolítica de varrer a corrupção e não duraram muito. Em parte, por proporem uma agenda de austeridade, que no caso de Collor veio junto com um esquema próprio de corrupção.

A ruptura com o lava-jatismo de Sérgio Moro, junto com exposição dos esquemas do filho, Flávio Bolsonaro e Queiróz, apagaram a imagem de santo que o presidente Bolsonaro tentava construir. Consequentemente, ele foi levado a buscar proteção no menos antipolítico dos blocos no Congresso. A aliança supostamente protetora do Centrão, junto com as investigações no Ministério Público e Supremo Tribunal Federal, devem continuar minando a aura de justiceiro de Bolsonaro, até 2022.

O controle da agenda antipolítica perdido e a suposta luta contra a corrupção, junto com a pauta moral conservadora, não parecem ser capazes de resolver as eleições, ainda que continuem influentes para limitar o crescimento do PT em eleições majoritárias.

Continua forte o antipetismo. Permanece ainda muito presente no imaginário popular a grande campanha contra o PT promovida pela mídia, junto com a elite liberal-conservadora e o ministério público, que culminou com o golpe institucional de 2016. A soma destes fatores são os principais responsáveis pelo fraco desempenho eleitoral do PT.

A grande mídia conservadora está exultante e a turma da Faria Lima representada pelo DEM mais ainda O cenário está preparado para uma solução liberal-conservadora (de centro-direita) que jogue a esquerda cada vez mais para a margem do jogo eleitoral. Mas para que essa alternativa deixe de ser apenas possível e se torne cada vez mais provável será necessário um silêncio ruidoso sobre a situação econômica e a crise social do país, cenário anunciado para 2021. Este parece ser o ponto central da agenda do próximo ano.

O gasto do governo federal através do auxílio emergencial foi o principal fator que impediu a deterioração da situação econômica e social da população mais pobre e sustentou a popularidade do presidente, particularmente numa conjuntura de forte desemprego. No período mais grave da pandemia foram atendidas 67,2 milhões de pessoas, algumas recebendo até R$1.200,00. O custo estimado do programa de auxílio emergencial, até outubro deste ano, ficou em torno de R$ 300 bilhões (4,2% do PIB). Quinze milhões de pessoas saíram da pobreza (23% do total de pobres), a maior redução da desigualdade social da história brasileira.

Os partidos da base do governo aproveitaram muito bem essa situação para se distanciar do bolsonarismo fundamentalista de negação da coronacrise, e foram em busca dos louros do programa de auxílio emergencial. Em troca, o Centrão passou para defesa contra o impedimento do Capitão. O Centrão e o DEM com essa perspectiva política cresceram mais que os partidos bolsonaristas, que também cresceram eleitoralmente nas cidades menores e nas zonas rurais do país.

Em setembro, foi cortado pela metade o valor do auxílio emergencial e não há indicação de que o benefício será mantido no próximo ano. Os reflexos desta redução só devem aparecer nos meses finais de 2020. Mas a mera perspectiva de fim da ajuda e a preocupação com o desemprego já devem ser suficientes para conter o ímpeto do consumo. Consequentemente a atividade econômica será afetada, visto que o consumo é quem lidera o movimento de reação depois de uma recessão. Diante destes obstáculos, o principal componente do PÌB, o consumo das famílias, irá recuperar-se mais devagar. Sem o auxílio emergencial, 2021 vai ser marcado pelo aumento do desemprego, crise social, quebradeira das prefeituras e crise política.

Ao contrário do que diz Guedes, a Faria Lima e a grande mídia, a recuperação da economia veio bem mais fraca do que o esperado. Os dados de outubro mostraram um recuo do consumo, devido à diminuição do auxílio emergencial. O ministro Guedes explicou que foi um aumento da poupança por precaução. Justificativa hilária, não fosse trágica, pois significa que o auxílio emergencial não é importante para recuperação e que o elemento central é o ajuste fiscal e a manutenção do “Teto de Gasto”.

Provavelmente a luta interna ao (des)governo de Bolsonaro deve estar muito dura entre Guedes com apoio de Baby Maia, da Faria Lima e da grande mídia, contra a maior parte do Centrão em aliança com alguns ministros militares.

Fica claro que o destino político de Bolsonaro passa pelo abandono da Lei do Teto do Gasto ou, pelo menos, de sua flexibilização. Portanto é 2021 que vai decidir 2022. A incerteza que domina a conjuntura política e econômica até a eleição presidencial é enorme. Como se dará a evolução da pandemia? Quando a vacina vai estar disponível para aplicação em massa?

As instituições multilaterais estão prevendo, em seus cenários mais favoráveis, que a recuperação mundial comece mais firme entre o segundo semestre de 2021 e o final de 2022, mesmo assim, condicionada ao sucesso da vacinação e da realização de gastos públicos pela China, Europa e pela nova administração americana.

No Brasil, com Bolsonaro perdido e sem Trump só lhe resta tentar aprovar algo semelhante ao auxílio emergencial, que o fez ganhar popularidade no início da pandemia. Irá romper com Guedes e a Faria Lima?

Essa conjuntura abre espaço para a oposição de esquerda ter uma oportunidade para realizar um esforço bem articulado de estimular e recuperar alianças baseadas na população pobre e precarizada, que traga de volta o que não soubemos conservar. As diretrizes para ação unitária são claras: combate à pandemia, valorização dos serviços públicos (em particular os de saúde e de educação), criação de frentes de trabalho e combate ao desemprego, auxílios emergenciais, crédito para os micros e pequenos empresários e medidas de combate ao aumento de preços.

Perder essa oportunidade que se abre, como ocorreu em 2020 quando da aprovação do auxílio emergencial, significará, em 2021, perdermos 2022.