o centro político no Brasil

 

A Balmes é uma importante artéria de Barcelona. Corre do Norte para o Sul com um pequeno desvio para Leste pouco antes de chegar ao final. Cai da montanha na direção do mar (o Mediterrâneo, ou Mare Nostrum como o chamavam os antigos romanos), numa extensão de pouco mais de três quilômetros. Chega quase até a Praça Catalunha, o coração da cidade, mas não a alcança – interrompe-se a duas ou três quadras dali, talvez ligeiramente frustrada.

Até aproximadamente o final de julho, ocupando os primeiros pisos de um vistoso edifício envidraçado de um dos seus trechos mais nobres, lá ficava a sede de um dos principais partidos da Espanha, a terceira e até ali ascendente força política do país. O colorido partido de centro (como orgulhosamente gostavam de se proclamar) que após um resultado excepcional nas eleições de setembro de 2019 anunciou sua imediata chegada ao poder. Nas eleições seguintes, pouco menos de um ano depois, viu-se reduzido à insignificância, obrigando seu soberbo presidente a dar as caras para anunciar sua renúncia definitiva à vida pública.

A Balmes, onde não está mais a sede daquele partido, tem uma bela perspectiva e, lá do alto, perto da montanha, quase é possível ver o mar. Encantados com a grandiosidade da sede que ocupavam, os liberais do autoproclamado centro político talvez tenham, em suas idas e vindas pela rua, suposto que a perspectiva da via lhes fornecia também a visão da cidade inteira e, até de muito, muito além. Mas não era assim. Estavam equivocados. E esse erro, como se sabe agora, custou-lhes a própria vida, por assim dizer.

Quem passa agora por aquele edifício tão cheio de brilhos e reflexos onde ficava a sede dos futuros ocupantes do palácio de la Moncloa (a sede oficial do chefe do governo na Espanha) já não vê mais as enormes fotografias com as faces sorridentes do jovem ex-presidente daquele partido, destinado (sabe-se lá por qual divindade) a ser o novo, o equilíbrio e o bom senso na política espanhola, nem tampouco a da também muito jovem presidente que o substituiu. Seus eleitores se foram, quase todos capturados pelos rivais que de verdade lhes diziam o que eram e o que queriam: os partidos da direita tradicional e o da renascida e agora desavergonhada extrema-direita.

Sabedoria política

É verdade que a sabedoria política não é exclusividade nem da esquerda nem da direita. Agora, que a cretinice ou a estreiteza de horizontes parece ter um especial apreço pelas seitas, sejam elas minúsculas ou gigantescas, chamem-se elas liberalismo ou stalinismo, isso parece não haver dúvida. O stalinismo e suas diversas variações deram no que deram, desmoronaram, embrutecidos e carcomidos, quase que da noite para o dia, sem deixar mais que tristes lembranças marcando a memória dos que quiseram uma alternativa às iniquidades do mundo do capital. Quando desabou como uma fruta para lá de podre, lá estava o todo poderoso ultraliberalismo e sua dupla de paladinos (Reagan-Thatcher), ansiosos para gozar sobre a tumba do moribundo e anunciar, por fim, a chegada do paraíso.

Não era assim, e agora mesmo são obrigados a pôr os rabos entre as pernas, sem ter receitas ou instrumentos para enfrentar pandemias chegadas da China e, muito mais poderosa, a própria Armada chinesa que avança pacífica e irresistivelmente mundo afora – nem comunista, muito menos liberal, quiçá diabólica e ironicamente keynesiana. Não há como não conter o riso.

No Brasil, sabe-se lá como ou porque, o andamento da política, quando parece já ser ruim o bastante, consegue ficar ainda pior. Incapazes de reconhecerem o próprio acanhamento da perspectiva (o que facilmente nos faz lembrar o famoso poema que dizia mais ou menos assim: “a família mineira contempla o horizonte/a cerca de arame à frente”), os esforçados artesões do neoliberalismo (ou seja lá o que for) brasileiro parecem acreditar que a visão do comerciante ou do homem de negócios (orgulhoso entrepreneur) pode dar conta das complexas linhas que costuram e possibilitam o desenvolvimento da grande política.

Estreiteza de classe

Sim, é verdade que a inteligência política não é exclusividade nem da esquerda nem da direita. Mas seguramente é uma estupidez de grandes dimensões acreditar que basta a visão do virtuoso homem de negócios para que se tenha um político virtuoso (ver Maquiavel). É claro que podia funcionar – e para o que se pretendia então, funcionou – a relação entre Lula e Henrique Meirelles. Mas, precisamente no papel que cada um desempenhava, nunca na inversa – o que para a sofisticada cultura de classe das elites brasileiras deve ter sido inimaginavelmente difícil de engolir e, convenhamos, demandado um tremendo sacrifício. Quanto despojamento e espírito público. É claro que houve aqueles que preferiram crer que o verdadeiro comandante do processo era o presidente do Banco Central e não o da República. Ficava mais fácil de aceitar aquela simbologia que na realidade refletia muito mais uma relação entre classes sociais que entre personalidades no desempenho de funções públicas.

É que o problema é político no sentido mais amplo do termo. O que isso quer dizer é que, apesar de toda a experiência histórica recente (século XXI), na qual, durante a primeira década, o país foi exemplo de crescimento e virtude no mundo ocidental, passando, no segundo decênio, a ocupar o papel oposto, os liberais brasileiros (neoliberais, o centro, o que sejam ou queiram ser…) preferem permanecer com os pés fincados na lama ou, pior, apoiando, como apoiaram no princípio, a esdrúxula aventura bolsonarista, a se aliarem ao projeto político que fez o país crescer e enriquecer como nunca antes e, mais importante, se acercar como poucas vezes na história à real possibilidade de se constituir como verdadeiro Estado nacional.

A verdade é que o que há nessa escolha política está contaminado por um tipo de perversidade talvez muito própria da formação social brasileira. Uma deformação onde o sentimento de classe, o berço, o ódio que o acalenta desde séculos, é de tal dimensão e está de tal modo enraizado que oblitera o raciocínio, entorpece os sentidos e a razão – obstaculizando a construção do Brasil como nação. E a cada oportunidade de se reconciliarem com a nação, como agora, preferem se recolher à mesquinharia e covardia, à mentalidade de seita, de pechincheiros, afastando-se das forças capazes de colocar o país de novo numa perspectiva de desenvolvimento real.

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