O aumento da abstenção nas eleições de 2020, em especial em algumas capitais, tornou-se a pauta recorrente de diversos meios de comunicação nas semanas posteriores à divulgação dos resultados do segundo turno. Alguns buscam explicações, outros discutem alarmados se estes seriam sinais de uma crise de confiança do eleitorado. São como as vítimas assustadas pelo Fantasma de Canterville, que perde seu poder quando enfrenta uma análise pragmática e racional do fenômeno.

A matemática eleitoral é mais complicada para ser analisada apenas por um único número. Recentemente, fixaram-se no aumento da abstenção em algumas cidades para mais de 30% dos eleitores. Seria o sinal de alerta para a existência de uma crise, para os mais desavisados.

Que existe uma redução da confiança da população nos candidatos e partidos, levando a um distanciamento do sistema político é um dado da realidade. Porém, não é um dado novo. Tal como as peraltices do fantasma criado por Oscar Wilde, apenas passaram despercebidas por longo tempo. Vejamos exemplos da evolução do voto em duas capitais, nas três últimas eleições.

Em São Paulo, em 2012 votaram em algum dos candidatos pouco mais de 6 milhões de eleitores no primeiro e no segundo turno. Brancos e nulos ficaram em 12,7% e 11,6 % em cada votação. Em 2016 a eleição decidiu-se no primeiro turno, com cerca de 5,8 milhões escolhendo algum dos candidatos. Brancos e nulos somaram 16% e abstenções 21,8% Em 2020 no primeiro turno escolheram um candidato cerca de 5,3 milhões de eleitores, número quase igual no segundo turno. Na primeira votação brancos e nulos foram cerca de 16% e na segunda 13,5%. A abstenção cresceu de 29,2% para 30,8%

Em Porto Alegre em 2012, 794 mil eleitores escolheram algum candidato, 9,3% votaram nulo ou branco e 18,5% não compareceram. Na mesma cidade em 2016, 715 mil eleitores votaram em alguém no primeiro turno e 664 mil no segundo. Brancos e nulos passaram de 15,9% para 18,9% e a abstenção de 22,5% para 25,2%. Em 2020 foram 645 mil na primeira votação e 678 mil na segunda os que preferiram um dos candidatos. Brancos e nulos somaram 10,9% no primeiro turno e 4,5% no segundo. A abstenção foi 33,1% e 32,7% respectivamente.

Esta grande quantidade de número pode parece coisa de contador, algo aborrecido, mas por trás dela existe uma história de cada eleição. Nestes exemplos podemos ver que o número de pessoas que foi até a urna escolher um candidato de sua preferência vem caindo nas duas cidades desde 2012. A quantidade de pessoas que não escolhe ninguém vem aumentando, sendo parte da novidade, como pode ser visto em Porto Alegre, a migração do voto branco e nulo para a abstenção.

Em determinadas situações é a capacidade de mobilização dos candidatos em disputa que faz a diferença. Mesmo com uma alta abstenção, este ano votaram mais pessoas no segundo turno em Porto Alegre que na eleição de 2016, com o menor percentual de votos brancos e nulos desde 2004.

Uma das explicações para o maior percentual de abstenções é que embora o voto no Brasil seja formalmente obrigatório, o segredo escancarado a céu aberto é que há muito tempo ele é facultativo na prática. O surgimento do título eletrônico foi apenas mais um passo no processo de facilitar a justificativa do não comparecimento. A multa para quem não tem justificativa é irrisória e periodicamente o Congresso Nacional tem aprovado um perdão aos eleitores faltosos, como o receio que uma aplicação rigorosa da lei possa provocar uma redução do eleitorado. Mesmo aplicada, as sanções previstas em lei são inócuas para grande parte da população brasileira. Não poder tirar passaporte ou receber financiamento de agências oficiais? Dos milhões de pessoas que o Governo Federal desconhecia a existência quando foi aprovado o auxílio emergencial, quantos nunca tiveram um título de eleitor?

Porém, o que deveria nos preocupar não é apenas a parcela da população que perdeu o interesse em votar. Nas pesquisas de comportamento político, pelo menos nos últimos 20 anos, tem variado entre 40 e 50% o percentual de pessoas que responde que não votaria se o voto não fosse obrigatório.

Por si só a diminuição da parcela do eleitorado que participa das eleições não seria um problema. Em grande parte das democracias consolidadas o comparecimento nas eleições não chega a 60% dos inscritos, salvo quando há alguma questão relevante em disputa.

Mas como dito anteriormente, um número isolado não é a questão. Quando verificamos o apoio da população ao regime democrático em pesquisas como o Latinobarômetro, o Brasil apresenta um dos menores percentuais do continente. E embora ainda seja a maioria da população, uma parte dos que defendem a democracia como melhor forma de governo também considera que os militares deveriam intervir caso haja problemas, considerando a mistura entre caserna e política algo natural, ou defende que o presidente deveria poder governar sem interferência do Congresso Nacional.

Quando o país retomou a democracia nos anos 80, durante pelo menos uma década houve certo grau de otimismo. Independente das crises econômicas ou institucionais, a participação parecia ser a solução, seja nas urnas, seja nas ruas, como nas Diretas Já ou nas manifestações pelo afastamento de Collor de Melo. Os jovens foram protagonistas e consideraram o direito de voto a partir dos 16 anos como uma conquista. Nas últimas décadas este otimismo deu lugar à aversão à política. O percentual de jovens que chegam à idade do voto facultativo e se inscrevem como eleitor cai a cada eleição. O que muitos consideram um momento de vigor juvenil, as manifestações de rua de 2013 rapidamente assumiram um discurso contra os partidos políticos. O Movimento dos Indignados na Espanha fez nascer um novo partido. As poucas lideranças que surgiram no Brasil naquela época submergiram no processo político tradicional.

O alto percentual de abstenções nas eleições de 2020 pode ser em parte atribuído a diversos fatores, como o medo à Covid-19, o desencanto político ou a facilidade de justificar o voto. Porém, não é fato novo nem um sintoma de uma crise aguda. Ao contrário, é apenas mais uma marca de uma doença que vem debilitando nossa democracia de forma contínua, mas quase imperceptível, há muito tempo. Este, que nem sempre range correntes ou deixa manchas de sangue na sala, é o fantasma com o qual devemos nos preocupar.