Oppenheimer, dirigido por ChristopherNolan é objeto de muitas polêmicas. Em geral, todos concordam que é um filme que deve ser visto. Pedro Cattapam é um destes críticos que analisa em profundidade as questões presentes ou ausentes que o filme suscita. Antes de passarmos a leitura de sua análise, é ele mesmo quem diz, que como toda crítica, “inevitavelmente estará recheada de spoilers”, portanto, deve ser lida depois da película. No Terapia Política reproduzimos uma parte de seu artigo, sem spoilers,  e deixamos o link para os que quiserem ir mais a fundo. (Eduardo Scaletsky)

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Antes de tratar do filme propriamente dito, gostaria de comentar a trajetória de seu diretor, Christopher Nolan, até aqui. Talvez Nolan seja o mais badalado autor de cinema da geração que apareceu na virada do milênio anterior para este; certamente o melhor e mais badalado da boa safra de cineastas britânicos que surgiu naquele momento, da qual destaco também Danny Boyle (Cova Rasa [BOYLE, 1994], Trainspotting – sem limites [id., 1996]), Guy Ritchie (Jogos, trapaças e dois canos fumegantes [RITCHIE, 1998], Snatch – porcos e diamantes [id., 2000]) e Sam Mendes (Beleza americana [MENDES, 1999], Estrada para a perdição [id., 2002]) – uma geração que colocou o cinema britânico em outro patamar em relação à sua própria história: na célebre entrevista de François Truffault com Alfred Hitchcock (TRUFFAULT & HITCHCOCK, 1966), o primeiro sinaliza uma peculiaridade do cinema britânico da época da entrevista, este lhe parecia um grande deserto, salvo os dois maiores gênios da arte cinematográfica, Charles Chaplin e o próprio Alfred Hitchcock!

É digno de nota que Truffault ignorou o brilhante David Lean (A ponte do rio Kwai [LEAN, 1957], Doutor Givago [id, 1964]) e obviamente não poderia prever o aparecimento posterior de cinco ótimos diretores – Ken Loach, Peter Greenaway, Ridley Scott, Stephen Frears e Alan Parker. Mas a geração da virada do século passado para este deu ao cinema britânico um novo frescor e, ao mesmo tempo, um estilo para chamar de seu, ao menos naquele momento, já que cada um deles deu rumos diferentes às suas obras posteriores. Nolan, Boyle, Ritchie e Mendes surgiram com filmes tensos, por vezes angustiantes que, cada um à sua maneira, revelava o ‘lado B’ da cultura anglo-saxônica. Até aquele momento, o imaginário que os filmes britânicos de mainstream espelhava, ainda era fortemente marcado pela figura do inglês polido, respeitável, espirituoso, elegante e, talvez, um pouco pedante, mas, no fundo, uma boa pessoa, figura que transparece nas adaptações de Shakespeare para o cinema feitas por Lawrence Olivier (1944, 1948), em James Bond (em especial no de Sean Connery), no personagem Basil de Zorba, o grego (CACOYANNIS, 1964), interpretado por Alan Bates, ou no personagem Archie Leach, já derrisório, interpretado por John Cleese em Um peixe chamado Wanda (CRICHTON, 1988).

Ao contrário, com os primeiros filmes de Nolan e seus conterrâneos contemporâneos, a imagem internacional da cultura britânica não permaneceu mais a mesma e terminou por afetar até mesmo esta instituição chamada James Bond, cuja última encarnação, a de Daniel Craig, não é mais marcada pela elegância espirituosa, mas sim pela brutalidade, frieza e violência. Na obra inicial de Nolan e companhia encontramos gente desbocada, criminosa, pervertida, grosseira, sinistra, violenta, que habita um ambiente tenso, inseguro e que nada tem de acolhedor (coincidentemente ou não, num mesmo momento histórico em que o tão celebrado modelo keynesiano e o Estado de bem-estar social inglês eram destruídos, fazendo avançar a agenda neoliberal, até mesmo quando o primeiro-ministro, Tony Blair, e sua terceira via, supostamente seriam um freio ao desmonte iniciado por Margareth Thatcher – quando na verdade, se mostrou uma Thatcher de calças e mais afável).

Dos conhecidos filmes de Nolan, daqueles anos, Amnésia (2000), Insônia (2002) e a trilogia do ‘Cavaleiro das Trevas’ (2005-2008-2012) é preciso dizer que nenhum deles se passa nas ilhas britânicas e sim nos EUA, mas compartilham do gosto por crimes, por gente perversae violenta. E, fundamentalmente, por uma ambientação tensa, angustiante e que remete o público à sensação de que não é possível confiar em ninguém, que todos querem ‘se dar bem’ em cima dos outros, que não há acolhimento nem amparo, mas sim o ‘cada um por si’ próprio do terreno do capitalismo selvagem, no qual o Estado foi destituído de sua função de cuidados, restando a ele apenas a função da truculência violenta (policial, militar e de uma psiquiatria reacionária). E mesmo o que restou ao Estado é pervertido pelas forças financeiras que corrompem as agências de repressão para se beneficiar de diversas maneiras.

O próprio estilo narrativo de Nolan, propositadamente rocambolesco, confuso e tenso, com idas e vindas no tempo, recorrendo a tramas conspiratórias, a viradas de jogo, a vilões ocultos que pareciam verdadeiros aliados, a heróis ressignificados como criminosos etc., favorece a experiência angustiada e desconfiada no espectador, que atualiza, na sua fruição, muito do que vive no mundo real regido pelo neoliberalismo.

Outro grande interesse de Nolan, desde o início de sua obra, está em explorar os pesadelos que a ciência, sob o uso inescrupuloso de quem a financia – os poderes políticos e/ou econômicos – cria monstros. Vemos isso em Amnésia (op. cit.), na trilogia do ‘Cavaleiro das Trevas’ (op. cit.), em O grande truque (NOLAN, 2006), A origem (id., 2010), Interestelar (id., 2014), Tenet (id., 2020) e, finalmente, em Oppenheimer (op. cit.).

No entanto, se é possível ver esta crítica à ciência e à tecnologia de ponta como forças perigosas, há uma ambivalência na atitude estética de Nolan em relação a elas: seus filmes mistificam, ocasionam uma admiração, talvez adoração, ao esplendor, descobertas e invenções técnico-científicas – de certo modo, aparece sempre a ideia de que se deve combater os monstros criados pela ciência capitalista voraz com ciência e tecnologia de ponta. Há, com frequência, a ideia de que, no fundo, a ciência nos salva dos monstros que ela criou. Para combater o mal, é preciso ter coragem, usar da inteligência, da razão, da ciência e de grande tecnologia, e isso não é possível sem dinheiro.

Portanto, não há nenhum obscurantismo reacionário em sua obra, como salvação pela tradição ou pela religião, mas há, ainda, fé na salvação, desta vez através das próprias ciência e técnica capitalistas. Não há nenhuma outra alternativa – Nolan é um diretor de ficções que não aposta em nenhuma utopia senão no novecentista progresso científico.

Se essa posição estava já presente na obra pregressa deste autor, é em Oppenheimer que ela se torna verdadeiramente problemática, porque desta vez, diferentemente de todos os outros filmes mencionados, estamos lidando com uma tentativa de registrar, mesmo que através de uma ficção, uma história real, parecendo justificar sutilmente a criação da bomba, ou ao menos a trajetória de seu criador.

É verdade que Dunkirk (id., 2017) aborda eventos reais, mas com bastante liberdade criativa, na medida em que lida com personagens anônimos e no qual as histórias contadas são de pequenos eventos inseridos na narrativa maior da Segunda Guerra Mundial.

O efeito geral de Dunkirk é o de mostrar como foi tensa e incerta a participação dos civis ingleses no salvamento das tropas britânicas, mas Oppenheimer trata de um protagonista daquela mesma Guerra Mundial e também da física moderna – e quando decide contar sua biografia em cinema, parece querer dizer ao público: ‘Agora vamos contar a verdade sobre Oppenheimer’ de forma mais eficaz que um documentário, pois enquanto o segundo torna evidente sua intenção de contar a verdade histórica – e, assim, possibilita a crítica consciente de suas intenções e feitos – a ficção o faz sub-repticiamente, cinicamente, sedutoramente, podendo sempre tirar da manga a carta ‘Mas isso é tudo um grande faz-de-conta’, inviabilizando assim a crítica e a checagem daquela narrativa frente a outras. No entanto, os psicanalistas conhecem este mecanismo, o desmentido(FERENCZI, 1933), e sabemos que um manejo possível para lidar com ele, é dar o devido peso à experiência vivida e, assim, religar os afetos produzidos com o discurso expressado.

Como Freud já anotava em sua correspondência com Fliess (FREUD, 1895-1900), a fantasia é um embelezamento da realidade; sendo a ficção uma fantasia, veremos quais as operações do filme para tornar menos feia a história de Oppenheimer, o que também nos indicará o que sua estética supõe como sendo o belo e o feio e que desmentido ela assegura.

Para falar de minha experiência, dos meus afetos e do discurso que produzi sobre o filme em si, na medida em que ele conta a história aparentemente real de um homem real, sinalizo agora algumas distorções empregadas pelo filme, no que concerne à história real, e outras escolhas narrativas que me fazem crer que não me sinto bem ao ser esperado estar ao lado do ‘leitor-modelo’ desta obra, ou seja, o tipo de público a que pragmaticamente este filme é endereçado e que se espera que tacitamente acompanhe a história de modo interessado e cúmplice (ECO, 1990).

Clique aqui para continuar lendo a crítica no Psicanálise, Arte e Cultura, o que permitirá entender porque o autor encerra sua análise escrevendo assim:

“Tal qual a criatura da obra literária Frankenstein (M. SHELLEY, 1818), – e diferente das versões cinematográficas, nas quais a criatura é somente uma aberração assassina – conjugam-se neste filme o monstro e a poesia. Nolan fez de seu Oppenheimer o que o real Oppenheimer fez de sua maior criação: um monstro ético tornado possível por um exímio domínio técnico.”

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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política. 

Ilustração: Mihai Cauli
Leia também “La Dictadura Perfecta e a ácida sátira política“, de Henrique Chveidel.
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