A discussão sobre o fim da escala 6×1 foi retomada com força total em 2024. Reacendido pelo movimento “Vida Além do Trabalho”, o assunto ganhou destaque nas redes sociais pelas publicações do influenciador Ricardo Azevedo (PSOL), eleito vereador pela cidade do Rio de Janeiro no pleito deste ano.
O debate não é novo: já existe a PEC 221/2019, do deputado federal Reginaldo Lopes (PT), que propõe a redução da jornada de 44 horas semanais e oito horas diárias para jornada não superior a oito horas diárias e trinta e seis semanais, com entrada em vigor dez anos após a publicação.
A nova proposta, de autoria da deputada federal Érika Hilton (PSOL), com base no Movimento VAT, sugere a duração do trabalho não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, com entrada em vigor 360 dias após sua publicação. Ou seja, na prática, uma jornada 4×3.
A nova proposta superou a quantidade mínima de 171 assinaturas – foram mais de 230 deputados que apoiaram a medida – mas não foi protocolada em razão da “configuração de algumas comissões importantes da Câmara”. A deputada entendeu que, “ao fazer esse protocolo nesse momento, o texto poderia cair em mãos duvidosas para dizer o mínimo, e poderia prejudicar o avanço e as conquistas que tivemos até aqui”, afirmou.
Neste contexto, a comoção social foi alta no mês de novembro. Enquanto trabalhadores faziam barulho nas redes sociais em apoio à mudança, empresários, associações comerciais e setores da indústria se manifestaram contra a redução da jornada.
Na prática, o que significa a redução de jornada?
Primeiro, precisamos diferenciar o horário de trabalho da escala de trabalho. Isto é, a quantidade de horas trabalhadas no dia/semana e quantidade de folgas que o trabalhador tem durante a semana.
O horário de trabalho máximo atualmente é de quarenta e quatro horas semanais e oito horas diárias, de acordo com o artigo 7º, inciso XIII, da Constituição Federal. Contudo, a própria Constituição autoriza que haja compensação de horários e redução de jornada mediante acordos ou convenções coletivas de trabalho, instrumentos normativos negociados pelos sindicatos dos trabalhadores e sindicatos patronais.
Já a escala de trabalho legalmente permitida é a jornada 6×1, isto é, seis dias de trabalho e um dia de folga, preferencialmente (não obrigatoriamente) aos domingos, conforme Lei nº 605/1949.
Ou seja, um trabalhador pode ter escala de trabalho 6×1 com carga horária de 36 horas semanais – basta que trabalhe seis horas por dia, como é o caso dos atendentes de telemarketing.
Feita a diferenciação, vê-se que a PEC 221/2019 não atende aos anseios da classe trabalhadora porque, apesar de prever a redução da jornada de trabalho, não altera a escala de repousos semanais remunerados.
A reivindicação do trabalhador, que ganhou voz no Movimento VAT, não se refere apenas ao horário de trabalho. O trabalhador quer ter direito ao descanso em mais do que apenas um dia na semana, razão da existência do novo texto proposto pela deputada.
Superada a diferenciação de jornada para escala, entramos na questão da autorização constitucional para flexibilização da jornada.
São diversas as categorias que têm escalas de trabalho diferenciadas em razão de negociação coletiva, flexibilizando a jornada constitucional.
Por exemplo, os trabalhadores da saúde, bombeiros civis, vigilantes e outras categorias comumente trabalham em escala 12×36, isto é, um plantão de doze horas seguido de 36 horas de descanso. Inclusive, a Lei 13.467/2017, conhecida como Reforma Trabalhista, trouxe o artigo 59-A para autorizar esta escala por acordo individual escrito, sem necessidade de intervenção sindical.
As escalas diferenciadas não param por aí, sendo aplicáveis a petroleiros, portuários, marítimos, que muitas vezes trabalham 4×4, 14×14, até mesmo 30×30, valendo citar que o Supremo Tribunal Federal validou as negociações coletivas no Tema 1.046.
Vê-se, portanto, que a jornada constitucional é amplamente flexibilizada atualmente. Então, qual a necessidade de uma mudança constitucional de escala tão significativa?
O Brasil é um país de dimensões continentais e de imensa desigualdade social. Neste contexto, cabe considerar que os trabalhadores que estão inseridos em categorias organizadas, com atuação sindical forte e com capacidade de negociação perante o empregador, são a minoria.
Em 2022, mais de 40 milhões de brasileiros trabalhavam em situação de informalidade no Brasil, representando 42,1% da população ocupada. Em 2023, dos 100 milhões de brasileiros ocupados, apenas 8,4% eram associados aos sindicatos.
A maioria dos trabalhadores brasileiros está em condições precarizadas de trabalho. São aqueles que, numa tentativa de negociação, ouvirão do empregador “lamento, mas tem outro que quer estar no seu lugar”.
É nítido que a maioria esmagadora dos trabalhadores brasileiros ainda está inserida na jornada de 44 horas semanais, em escala 6×1, não sendo possível utilizar a carta da negociação para obstar o prosseguimento da PEC por uma suposta “desnecessidade”.
No fim, tudo nos remete aos impactos que a redução de jornada e escala traria à economia brasileira.
Países de primeiro mundo, como Itália, Austrália, Suécia, Bélgica, Suíça, Alemanha, Irlanda, Noruega, entre outros, têm jornada de trabalho média de 36 horas semanais.
Tais países experimentaram aumento de produtividade, considerando a redução do estresse e fadiga dos trabalhadores, resultando em uma maior eficiência na execução de tarefas. Houve, também, estímulo ao consumo, considerando que os trabalhadores passaram a ter mais tempo livre para o lazer, beneficiando setores como turismo, cultura e entretenimento.
Os custos com a saúde foram reduzidos, diminuindo gastos públicos e privados com afastamentos e tratamentos médicos, considerando que problemas de saúde física e mental estão relacionados com jornadas exaustivas, que geram doenças ocupacionais.
Os benefícios são inúmeros. Contudo, o setor empresarial varejista e da indústria, ao se manifestar de forma contrária às modificações, cita falácias para alegar impactos negativos à economia.
Empresários alegaram que haverá “redução da produtividade econômica” caso seja implantada jornada de quatro dias, bem como citaram risco de aumento do desemprego, chegando a afirmar que empresas podem “buscar reduzir custos com pessoal”. Afirmações que não levam em consideração qualquer dado ou estudo de caso. Todos os países que reduziram a jornada tiveram resultados positivos em produtividade e níveis de emprego.
Artigos publicados chegaram a afirmar que áreas essenciais, como saúde, segurança e serviços de emergência poderiam ser prejudicadas, pois uma jornada de quatro dias “pode comprometer a eficiência e a disponibilidade de serviços vitais”. A alegação beira o absurdo, pois, como já vimos, estas categorias já têmescalas especiais de 12×36 e outras firmadas em negociação coletiva, e não seriam afetadas pela mudança constitucional.
Há quem diga que o impacto maior será para o pequeno empresário, que não tem inovações tecnológicas e muitos empregados para suportar uma mudança de escala. Entretanto, tal argumento também não se sustenta, pois a escala permite uma flexibilização fácil no pequeno negócio.
Apenas a título de exemplo, imaginemos uma pequena hamburgueria que funciona todos os dias, com maior movimento às sextas-feiras e sábados, com três funcionários. Na escala atual 6×1, o dono organiza as folgas da seguinte forma:
Considerando uma mudança para a escala 5×2, um meio-termo entre o padrão atual e a proposta da deputada Érika Hilton, o dono da hamburgueria poderia ajustar a escala para sempre ter o maior número de funcionários nas sextas e sábados, dias de maior movimento, e ainda sim conceder duas folgas semanais a todos:
Somente na hipótese de ser fixada a escala 4×3, haveria necessidade de contratação de mais um funcionário, favorecendo a criação de empregos – ao contrário daqueles que afirmam que a mudança traria desemprego:
O exemplo serve apenas para exercitarmos a nossa capacidade de adaptação a uma nova realidade.
Pela proposta atualmente discutida, é evidente que haverá desidratação no texto para diminuir a redução na jornada. O texto original, que propõe redução para 36 horas semanais e quatro dias de trabalho, pode acabar em um meio termo como quarenta horas semanais e cinco dias de trabalho, jornada já adotada em muitas empresas.
Dito isto, é sempre importante ressaltar que escala 5×2 não implica, necessariamente, em trabalho de segunda a sexta-feira com folgas no fim de semana – por isso trouxemos o exemplo da escala acima.
Ainda assim, a redução é substancial e será muito benéfica ao trabalhador brasileiro.
Embora a transição exija adaptações, os benefícios do fim da escala 6×1 podem ir além do bem-estar dos trabalhadores, promovendo avanços estruturais e fortalecendo a economia em múltiplos níveis. Ficamos na expectativa do desenrolar do debate em 2025.
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Os artigos representam a opinião dos autores e não necessariamente do Conselho Editorial do Terapia Política.
Ilustração: Mihai Cauli e Revisão: Celia Bartone
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